Um sopro cai

21/03/2019

Estou sempre, estou quase sempre em silêncio, mexendo uma colher em um café já meio frio. Depende do momento, se eu tivesse me posto a falar 30 minutos antes, estaria com o cardápio na mão e uma bebida já iniciada à minha frente. Ao meu lado, você, longe como um sonho e já não sei se é dia ou que horas, se na América, na Europa, em uma ilha ou um poema. Faz silêncio. Se um filósofo viesse até nós com uma pistola ou uma raquete, você iria? Se o amante da Indonésia, que abandonou esposa e filhos, pintasse um quadro e dissesse que tua bunda o lembrava de um pêssego, você iria? Um caubói, um cantor... On se verra bientôt me disse enquanto descrevia tua Casablabca e contava dos filhos que nunca quis ter. Eu escuto bem, só que não sei ler. Só por isso leio. Porque não sei. Em quanto tempo se percebe o nunca antes? Alguns segundos? Ou no infinito maior que a vida? Se me das a elegir, você me disse com voz grave, era teu dia de latinoamericana, entre tu y la historia, e eu tentei completar esta frase por meses e meses, parecia uma ótima oportunidade para virar um escritor e adivinhar a próxima palavra. Consegue antever a palavra a seguir? A que vai vir? A próxima frase? A um escritor só lhe resta adivinhar palavras. Se ti fa soffrire, perche resti? Você caminha pelo globo com um caleidoscópio de sons e cada parte desse longo tilintar recruta o insano que chama por meu nome e que responde nessa praça insólita, um viajante que joga fora o mapa que já não serve para nada e que coleciona fotos nunca tiradas. Caminho, os quarteirões se evaporam e deixam vestígio como cheiro de chuva, como o gosto de um primeiro beijo. Um sopro pode cair? Você disse. É possível. E como gosto de um suspiro! Guardo tua língua afiada, guardo o espanto que experimento sempre que escuto esse idioma de mil vozes, de mil sons, de mil léguas. Não interessa de onde vim. O que quero é ir. Onde há susto? Um susto entremeado por uma dança, por um engano, um gracejo bobo, um gesto incerto e um olhar sem porquê. Você não sabe o que diz. Dá uma pirueta em câmera lenta, debocha de um passante e sorri a um cão. Me chamou para dançar em uma sala escura ao som de jazz. Eu disse que amava você, que não era nada como eu imaginava. Gosto de borrar e de apagar memórias, elas reaparecem mais vivas assim. Sob a forma deste assombro que eu cultivo como você cultiva frases interrompidas. Algo passa por este vão e eu ainda me pergunto, me pergunto desde criança, menino excessivamente ocupado com a euforia da ignorância, porque ficamos, porque nos ofertamos, porque movemos os lábios e habitamos este filme insabido? Você, que não sabe o que diz, sabe isso. É por isso que só posso perguntar a você.