S'outro que fala

20/02/2020

Não me pertenço, não sei qual minha imagem, qual meu nome. Não sou idêntico a mim mesmo, desarmônico, descompleto, dissimétrico. Ei. Nos melhores momentos me desconheço, não sei o que digo, não sou dono do que penso. Não saberia reconhecer meu interior ou exterior. Estranho, inconsistente, dividido. Minto. Eu mente. Ei, ei! O que posso conhecer de mim não recobre o furo de meu ser, vazio do qual sou efeito. Recorto o outro e o acesso que tenho a ele é condicionado por ficções impotentes em atingir sua verdade última. Meu corpo? Tela dramática, tramática, sintática, erótica, letras que não domino o têm mais que eu. Tsk, tsk, invento e deliro o outro, mesmo aqueles que mais amo. Sou também um objeto para o outro, que delira a partir de minha imagem, de minha voz, de meu silêncio, de minhas palavras e de meus pedaços. Sou também um objeto de que o outro faz usos, mesmo aqueles que mais amo, usos que desconheço e que talvez ele mesmo desconheça. Não governo o desejo do outro, falho em decifrar e responder a seus desejos, por mais que suponha compreendê-lo. Eu te entendo = eu descanso de teu mistério. Falho em fixar um ponto para minha identidade. Não tenho língua própria e falo sempre em lugar de estrangeiridade. O referente que determina minha palavra me escapa. A que respondo? A nada, a algo que passou e que não tinha nome. Respondo a nada. Quem sabe esbarre em você, que também responde a nada. Escapo, resto, tropeço, equivoco, extravio. Quem sabe esbarre em você, que também escapa. No meio disso, viver o milagre do irrepetível, mais ou menos durável. Ainda assim, recorrer aos contornos para soltar as rédeas da língua. Ainda assim, falar. S'outrar as rédeas. S'errar a fala. Avizinhar-se do desreflexo. Inventar graça. Susto que fala. S'outro que fala.