Sobre o gesto de leitura

15/09/2020

Ler, como o desejo: habitar a distância, extraviar-se do que o sustentava e que, justamente por isso, o impedia de ler. Ler não como prática do acabamento ou da solidez, não como prática da certeza e da segurança, mas como ato de suspensão, de aposta, de jogo. Deixar que o saber advenha de outro lugar onde ler é buscar, mas não encontrar. Ler como gesto de desvio, de divisão, de abertura. Não mais como referência: como referrância. Consentir no vagar que desenha algo entre as palavras. Desenho que só pode emergir naquilo que falta à palavra para se dizer.

Uma leitura separa algo. E o que surge daí haveria de receber um testemunho particular quando o espanto herdeiro da leitura pede para tomar a palavra. Ler não mais para escrever e dizer do que sabe, mas como prática de não saber. Tomar a palavra para deixar dizer aquilo que ainda não se sabe, que talvez retorne como leitura, só depois. Rumar para esta possibilidade de sustentar um espanto diante dos traços. Visitar os traços que antecedem o milagre da letra. Onde ler já não é saber, mas consentir em sua ex-sistência...