Referrância: o gesto de leitura como produção de um referente dividido

01/12/2021

Referrância: o gesto de leitura como produção de um referente dividido.

ou: esta escrita já aconteceu ou está acontecendo? (onde o leitor produz o texto que só ele lê).


CONCLUSÃO

Ler, escrever e tentar transmitir algo sem saber ou dizer sua origem disparadora, já em uma posterioridade, desenho que atravessa o indecidível de sua causa primeira... 

Eleger uma combinatória de letras, que urgem por sentido, que convocam imagens, identidade, ser... e que só podem mentir, para veicular algo da verdade que elas recobrem e a qual aludem.

Supõe-se aqui uma escrita que possa, desde dentro do aparato limitado, mentiroso e de semblância da linguagem, operar efeitos de drenagem, de escansão e ruptura que abram no leitor um ponto - um instante? uma distância? uma subtração? - que o presente trabalho gostaria de destacar: escrita não apenas advertida do vazio que a tornou possível, mas que consinta que este vazio siga produzindo efeitos na língua, que escute, que leia, que recolha, também, estes efeitos.

Ler, então, é um gesto de produção de estranhamento, de espanto, de distância. Ler separa algo. A escrita entra aí, para fazer algo com isso: lembrando ou esquecendo-se d'isso.

Nesta separação, advimos: aquilo que não sabe o que faz, aquilo que não sabe o que diz, aquilo que quer transmitir, aquilo que chama, que pergunta, que se pergunta, que demanda, ou que já não apenas demanda, aquilo que talvez queira ler, que imagina, que fabrica, aquilo que mente, sabendo-o ou não, aquilo que deseja, a cada vez que nenhum gesto detém a eleição da referência definitiva, aquilo que tenta escrever e dizer do que sabe, ou do que não mais sabe, onde ler já não é saber, mas consentir em sua ex-sistência...

... uma leitura consente neste vagar.


UM POUCO ANTES

Um considerável esforço foi feito para entender se Lacan chegava a uma conceituação última do termo escrita, se esta recebia um tratamento unívoco, específico e acabado. Se a resposta fosse negativa, considerou-se então o trabalho de inventariar os diferentes usos que Lacan dedicou ao termo.

A escrita foi trabalhada por Lacan em diversos momentos de seu ensino. Cito pelo menos 3 bastante distintos: no seminário 9, no 18, no 23, amparado a cada vez por diferentes instrumentos teóricos e questões específicas.

Não parece que Lacan tenha isolado ou esgotado um uso exclusivo para o termo. Ainda assim, o acompanhamento de diversos trabalhos dos dez últimos anos de seu ensino indica que reservou para a escrita o próprio esforço da transmissão da psicanálise, aliado a diversos suportes: a topologia, a lógica, a matemática, sob a forma da teoria dos discursos ou dos nós borromeanos, por exemplo. Após tal incursão, articula-se aqui o que se pôde recolher desse tempo e dessa leitura, propondo localizar ao menos quatro enfoques distintos a partir dos quais a escrita recebe a atenção de Lacan:

  • Um diz respeito ao desenvolvimento da escrita na história das civilizações humanas. É sabido que Lacan foi sensível a estes estudos, como o atestam, no mínimo, as menções feitas no Seminário 9 e 18 (os ideogramas, a escrita suméria, a chinesa, entre outras).
  • Outro diz respeito às operações lógicas da identificação através de acontecimentos de gozo no enlace com a linguagem e suas leis. Neste campo, termos como letra, significante e fantasia se apresentam como artifícios da ordem de uma escrita (scriptológicos) que uma análise procura construir e dar a ler.
  • Um terceiro propõe tomar a escrita como sinthoma, em sua função de suplência, como Lacan articula tomando Joyce como exemplo no seminário 23.
  • Por último, tem-se o uso da escrita para fins de formalização e transmissão da experiência analítica. Neste âmbito, a escrita é buscada para logicizar os três registros (RSI), cuidando de incluir aí o real como impossibilidade lógica no próprio cerne da linguagem.

No entanto, para além deste objetivo de organização, a pesquisa produziu encontros - isto é, desvios - que tornaram-se parte do processo de pesquisa. Propus ser fiel a este acidente pois ele parece concernir justamente ao desafio em questão: encontrar um referente que organize o lugar desde o qual a escrita opera. Vejamos...


DA ESCRITA

Convém recolher do seminário 18 a proposta de servirmo-nos da escrita para interrogar a linguagem, visando aquilo que é perdido ou que resta como impossível de ser enunciado na linguagem: uma das definições do real.

Neste momento (estamos em 1971) a escrita é tomada como meio de abordagem da verdade de que trata a psicanálise para formalizar o real em sua dimensão êxtima em relação à linguagem. Para sustentar que a verdade não é toda dizível na linguagem, Lacan propõe que tal impossibilidade só atinge uma formalização digna desse nome através da lógica. Neste caso, a escrita algébrica é o instrumento que daria suporte a esta especificidade.

O escrito se afigura como distinto da linguagem, e é através dele que é possível interrogar a linguagem e seus efeitos no falante. Não apenas isso, é também função do escrito interrogar a dimensão (diz-mansão) da verdade. Assim, tal instrumento, de um lado, enuncia a inexistência de um referente que permitisse escrever a relação sexual e, de outro, interroga como o ser falante se sustenta em um discurso que faz semblante diante dessa impossibilidade.

Em Lituraterra, Lacan avança nas significações que empresta à ideia de escrita e chega a destacá-la como o ravinamento do significado no real. A escrita produz significado nas bordas dessa impossibilidade, como se, a cada esforço de aproximação do real, irrompesse uma precipitação designificados para tentar dizê-lo, incorrendo assim, inevitavelmente, em encobri-lo e escamoteá-lo. Um impasse que diz dessa impossibilidade de determinar um referente último para a linguagem: aquele que a permitiria fechar-se como unidade acabada.

O esforço do psicanalista se dá em direção oposta a tal acabamento: Lacan envereda por um trabalho de algebrização da escrita que, ao apostar em enxugar algo do peso debilizante do imaginário, tenta não perder de vista a margem de real que participa de sua causa e, assim, talvez favoreça um outro franqueamento dessa impossibilidade. "A escrita cava um vazio", diz em Lituraterra: justamente o lugar desde onde a linguagem pode ser interrogada.

É que uma das preocupações de Lacan ao longo dos anos 1970 apontava para os obstáculos impostos pela inclinação estrutural do falante em, pela via do sentido, tamponar os lugares onde este falha ou não pode alcançar. A escrita poderia operar como suporte que busca esvaziar a prevalência imaginária à qual o discurso convida, circunscrevendo a impossibilidade - o ponto? o instante? a distância? mesma que estrutura e causa o falante.

No Seminário 23, Lacan diz da potência dessa escrita para aliviar a obstrução do imaginário ao pensamento: "É por meio de pedaços de escrita que entramos no real, isto é, que paramos de imaginar". Mas como desinflar a proliferação imaginária que empresta sentido sem cessar ao que justamente lhe ex-siste? A aposta era em uma escrita que pudesse desinflar o protagonismo hipnótico e soporífero do imaginário até extrair seu núcleo de letras lógicas para, assim, transmitir a especificidade da experiência analítica sem perder de vista seu quinhão de real.


DA LETRA

Ocorreu então alinhar, junto ao que Lacan afirma sobre a escrita, aquilo que ele diz sobre a letra: seguindo a lei da metáfora, a letra está em lugar diferente da linguagem, afigurando-se como aquilo que desenha, que cinge uma borda precisamente no furo do saber, onde não existe proporção entre os sexos possível de ser escrita.

"Não existe saber a não ser o transporte das palavras que desenham aquilo que falta à linguagem", li em Olivier Sigrist. Bonita articulação: a letra é o que se recolhe - como saber textual - do desenho, produzido a partir do transporte de palavras, daquilo que a palavra não pode dizer. Esta falha produz um desenho que uma psicanálise aspira dar a ler.

A letra adquire aqui o significado de uma cifra, efeito da irrupção da verdade que advém na falha do saber, o próprio sujeito emergindo aí representado nessa disjunção, nessa síncope. É assim que entendo a notação da condição da letra como rasura, marca de ruptura, de semblante, dissolvendo o que constituía forma.

Letra: desenho lido do conjunto de perdas recorrentes no trajeto do sentido em busca do referente original. Em si mesma, entretanto, a letra não quer dizer nada, já que só existe e opera graças à extração de sentido da qual foi objeto. A letra como mortalha vela o que desaparece com o seu advento.

Mas se por um lado a letra [lettre] é aquilo que se apresenta como um 'já escrito', por outro ela pode adquirir estatuto de carta [lettre], passível de surtir novos efeitos em seus leitores. Ao querer dizer de um acontecimento, de uma marca, pode ainda produzir acontecimento, movimento, fazer marca, servir de novo traço. Aquilo que aqui se escreve talvez possa oferecer-se como traço a um leitor ainda por vir que precisará ler, isto é, produzir, seu próprio texto.

É aqui que vale propor pensar a letra como referente dividido: está no ponto de partida e, ao mesmo tempo, é uma produção que se dá à posteriori, já re-lida, decantada do instante de sua aparição. Sujeita às intermitências e ao trânsito indissociável ao campo do Outro. Embora opere como causa, para ser lida, precisa deixar-se escrever nas filigranas das repetições. Como o centro ausente que engendra a posição do sujeito na linguagem.

Neste percurso, a pesquisa desvela a face complementar e indissociável da escrita: a leitura.


DA LEITURA

No Seminário 20, Lacan afirma que o que se escreve por excelência é a solidão de uma ruptura do saber. A escrita, aqui, surge como rastro advindo de uma ruptura do ser, ponto de onde jorram os sentidos que proliferarão daí. Ler visita essa solidão.

O analista opera, então, para favorecer uma modalidade particular de leitura que está no bordejamento de uma letra que se situa mais além da ortografia, aproximando-se do sem sentido, do acidente aleatório pelo qual uma marca de gozo se fixou. Nesta passagem, interpelar os próprios efeitos que o sujeito pôde recolher desta leitura. Leitura que pode ser um meio do falante ocupar uma outra posição diante da verdade em jogo.

E não é que a escrita esteja pronta antes, desde sempre, esperando para cumprir sua função. É no próprio momento em que há o destacamento de algo que ainda não é letra, que o traço se torna letra: é a leitura que cria a escrita ou, como Michel Maffesoli desenhou: "Um livro é escrito por aquele que o lê". E se a escrita pode produzir efeitos no falante, é na medida em que este pode ler algo e, neste ato obscuro, dar lugar a uma articulação onde é a leitura que opera como causa.

O sujeito talvez poderia ser formalizado assim: é o efeito lido, buscando religar-se ao leitor que o produziu e que desapareceu neste gesto. Efeito do recorte contingente que reclama consistência. Efeito do ato que o dividiu. Como se fosse o ato que engendrasse um sujeito, desde então estruturalmente atrasado em relação a tal ato, buscando um ser, que desde então, resta necessariamente excluído. O sujeito produz a letra/carta que o cifra, mas só a encontra como lida, jamais de posse de um saber que precederia o ato. É, assim, o próprio ato que produz a referência. Ela não está antes: a cada encadeamento significante, ela é reinstituída, desviada, perdida, fundada.


PREÂMBULO

Uma tentativa de cruzar o litoral da língua para dizê-la pura, dizê-la viva, dizê-la desde fora, dizê-la intacta, transmitir seu referente originário, originante. Intenção impossível e malograda, mas que, por ironia ou por alegria, ao malograr, algo de notável ainda se transmite e leva adiante em seu desenho. Então, transmitir o próprio desenho e seus efeitos crivantes na língua: o quê ressoa e como ressoa em cada falante aquilo que resiste a se escrever?

Voltemos um passo antes de concluir. É que desejo fazer constar a beleza encontrada nesta palavra, crivar: ao mesmo tempo encher e furar algo, habitar e peneirar algo.

Entre releituras e reescritas, liberar algo da potência vibratória da linguagem. Extrair deste caminho uma possibilidade que a escrita pode franquear: ato que interroga e que, ao mesmo tempo, sofre os efeitos de seu próprio gesto.

Nomear esta referência dupla, dividida, esteve presente ao longo de todo o trabalho de leitura deste cartel. Nesta trajetória, um nome brotou como equívoco sonoro. Depois de buscar seu 'dono', descubro que fora eu mesmo o primeiro a fazer sua leitura: referrância.

Uma análise poderia então se afigurar como o esforço de ler, recolher isto que se revelou como já escrito, por detrás dos sentidos que tentaram lhe dizer, apostando que, nessa leitura, algo se depure e se modifique. Percurso que vai do traço selvagem à constituição do neurótico e sua fantasia estruturante; ou melhor: o percurso que vai da fantasia já estruturada, saturada, inflada, agora decompondo-a, depurando-a até onde possível, até se aproximar - sem, contudo, jamais recuperá-lo - do traço selvagem, marca puramente contingente em torno da qual o falante se viu lançado como tal na aventura da língua. 


* Este texto é produto final do cartel Lacan e a escrita, trabalhado entre 2018 e 2020 e declarado no Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo.

Publicado na Revista Livro Zero 12 do Fórum do Campo Lacaniano (dez/21).