Moderato Cantabile e o erotismo do fracasso

05/10/2020

Beatriz Chnaiderman e Laerte de Paula


Introdução

Moderato Cantabile foi escrito por Marguerite Duras em 1958. Algumas décadas depois, em uma entrevista concedida em 1987, a autora situa acontecimentos ocorridos à época que teriam transformado sua relação com a escrita: "Era como descobrir os vazios, os furos que eu tinha em mim, e de encontrar a coragem de dizê-los. A mulher de Moderato Cantabile e aquela de Hiroshima mon amour era eu: extenuada por esta paixão que, não podendo me fiar pela palavra[1], decidi escrever" (DELLA TORRE, 2013, p. 53, tradução nossa).

Se colocamos Moderato Cantabile em relação com alguns de seus primeiros romances, como La vie tranquile (1944), Le Barrage contre le Pacifique (1950), Le marin de Gibraltar (1952) e Les petits chevaux de Tarquinia (1953), observamos uma mudança importante no modo deescrita de Duras. Embora, sob certo ângulo, todos esses romances sejam tentativas de escrever o encontro amoroso, Moderato Cantabile, como Duras relatou na entrevista citada acima, toma como ponto de partida um fracasso, uma exaustão e, por isso mesmo, optamos por destacar seu gesto atravessado por esse impasse: alguma coisa não passava para a palavra/fala, mas sua aposta seria de que poderia passar pela escrita ou até mesmo pelo ato de escrever.

Propomos neste artigo que Duras escreve uma erótica nova em Moderato Cantabile, distinta daquela que era convocada até então em seus livros. Essa obra pode ser tomada como um possível ponto de virada entre a escrita de prazer e a escrita de gozo em seu percurso, para utilizarmos os termos de Barthes:

Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de gozo: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta [...] faz entrar em crise sua relação com a linguagem. (BARTHES, 1973/1996, p. 21-22)

Essa virada em sua obra é apontada pela própria Duras em uma série de entrevistas concedidas a Xavière Gauthier, em 1974: "Buracos. Eu disse, acho, em certo momento, 'os buracos'... Mas sabe, foi preciso escrever muitos livros para chegar a esse ponto. Há toda uma época em que escrevi livros, até Moderato Cantabile, que não reconheço"(GAUTHIER, 1974, p.12). Interessa-nos enlaçar esses buracos com a ideia de fracasso que vamos gradualmente articular neste trabalho. Duras destaca que tal efeito não estava lá desde o início: foi preciso escrever muito para chegar a tratar os buracos de alguma outra forma. Diz ainda: "Eu escrevia como quem vai ao escritório, todos os dias, tranquilamente. Levava alguns meses para fazer um livro e então, de repente, veio a virada. Com Moderato Cantabile foi menos tranquilo"(p.13). Um livro que a retira de um ritmo e de uma previsibilidade de produção. Algo começa a falhar no arranjo antigo. Duras marca aí o começo de um medo da escrita e de seus buracos, distinto da escrita que ela mesma considerou alienada, burocrática, harmoniosa.

A erótica dos excessos, do colorido imaginário, dos dilemas, é a marca de seus primeiros livros, que trazem muitas personagens e relações cruzadas, pensamentos secretos, ciúmes, paisagens monumentais. Moderato inaugura uma brecha: a erótica do fracasso, um gesto que aflora da morte e da loucura, tal qual uma estética do arrebatamento. O reduzido número de personagens e de espaços resulta em uma constante repetição de palavras ao longo do texto, convocando a monotonia e, ao mesmo tempo, produzindo a expectativa e seu decorrente fracasso.


De Eros, de Thanatos, uma introdução via psicanálise

Propomos a seguir uma incursão à ideia de erotismo tal como abordado pela psicanálise. Seguindo a trilha das vicissitudes da sexualidade humana e levando em conta a ausência, no humano, de um objeto pré-determinado e fixo que atenda sua busca por satisfação, Freud cunhou o termo pulsão para tentar abarcar a pluralidade das moções psíquicas. Não pretendemos esgotar a complexidade desse conceito e propomos ir direto ao ponto em que este se articula com a obra de Duras.

Em As pulsões[2] e suas vicissitudes, de 1915, Freud escreve: "O melhor termo para caracterizar um estímulo pulsional seria 'necessidade'. O que elimina a necessidade é a 'satisfação'"(FREUD, 1915/2006, p.124). Nesse texto, apresenta algumas modalidades do que ele denomina como defesa contra as pulsões, dentre elas a sublimação e a repressão. Em outras palavras, sublimação e repressão seriam modos de tentar dar conta da necessidade imposta pela premência pulsional. O sujeito precisaria se defender das pulsões que não podem ser eliminadas pelo aparelho motor, ou seja, precisaria dar algum destino para este excesso que não encontra estabilização natural. É necessário, portanto, uma operação suplementar.

As pulsões são caóticas, conitantes e, nesse ponto do desenvolvimento da obra de Freud, são governadas pelas marcas de satisfação (pulsões sexuais, dirigidas a objetos) e pelo eu (pulsões de autoconservação, dirigidas ao eu), ou seja, trata-se de uma montagem que não cessa de não dar conta da satisfação, malgrado o tom de necessidade que as pulsões impõem. A necessidade de satisfação pela via da descarga (da inervação pulsional), é a marca característica do princípio de prazer, um dos elementos fundamentais na teoria freudiana a comandar o aparelho psíquico.

No texto Além do princípio de prazer, de 1920, Freud passa a reconhecer que haveria uma tendência tão ou mais fundamental a fazer obstáculo ao princípio do prazer. Este já não dá conta de justificar sozinho certos mecanismos da vida psíquica: "subsiste um resíduo suficiente para justificar a hipótese da compulsão à repetição que nos aparece como mais originária, mais elementar, mais pulsional que o princípio de prazer que ela descarta" (FREUD, 1920/1981, p.70, tradução nossa).

Desse modo, Freud forja uma oposição entre duas tendências: Eros, associado à coesão, criação e à conservação da vida e dos laços, e Thanatos, desligamento, retorno à condição de não excitação, estado inanimado. Eros é a força que busca a ligação com algo maior que o eu, enquanto Thanatos lhe faz obstáculo. Freud dirá: "é assim que a libido de nossas pulsões sexuais coincide com o Eros dos poetas e dos filósofos, que mantêm a coesão de tudo o que vive" (p.109, tradução nossa). Essa frase chama a atenção, especialmente porque também buscamos uma articulação entre as montagens de Eros e a escrita. Duras fala da escrita como uma necessidade diante da destruição. Com Freud, podemos supor aí um esforço de coesão - ainda que sempre parcialmente fracassado - diante dessas duas tendências impossíveis de conciliar[3].

Para Lacan, a pulsão é sempre e tão somente a pulsão de morte: "a pulsão como tal, enquanto pulsão de destruição - isso deve ser algo que está mais além dessa tendência do retorno ao inanimado - não é essa vontade de destruição direta?"(LACAN, 1959-1960, p. 168, tradução nossa). A moção pulsional se afigura assim como estruturalmente destruidora, disruptiva, o que é diferente de pensá-la como tendência ao inanimado, que seria a cessação de todo movimento. A pulsão não cessa, ela insiste, desarranja, perturba, demanda.

Seguimos com Lacan: "que ela seja articulada como pulsão de destruição, já que coloca em causa tudo o que existe enquanto tal, o que ela é, em suma, é igualmente vontade de criação a partir de nada, vontade de recomeço"(p.168, tradução nossa). A criação não pode advir sem que algo seja destruído, rearranjado. A pulsão se evidencia nesse movimento de destruição e criação, no uso da linguagem para dar conta daquilo que aponta para um mais-além da linguagem: "há em algum lugar -- mas certamente fora do mundo da natureza -- algo que nós devemos, que nós só podemos considerar como mais além dessa cadeia significante, o ex nihilo sobre o qual ela [pulsão] se coloca, ela se funda, ela se articula como tal"(p.169, tradução nossa). A pulsão, portanto, é da ordem do Real, da insistência daquilo que é impensável, daquilo que não cessa de não se articular na linguagem:

A pulsão de morte é o Real, enquanto ele só pode ser pensado como impossível, o que quer dizer que cada vez que ele mostra a ponta de seu nariz, ele é impensável. Abordar esse impossível não pode constituir uma esperança. Porque esse impensável é a morte, da qual é o fundamento do Real que ela não possa ser pensada (LACAN, 1975-1976, p. 77)

Deste modo, as pulsões, enquanto montagens entre Eros e Thanatos, determinam algumas premissas que desejamos reter para introduzir a noção de erotismo: o conflito estrutural entre moções pulsionais caóticas e incessantes e a falta de um objeto natural e definitivo para aplacar sua premência. Logo, a princípio, qualquer objeto -- desde que investido e significado simbolicamente -- pode adquirir os contornos necessários para receber parte deste investimento pulsional, fonte de tensão psíquica. Pensamos a escrita de Duras como uma tentativa singular de se sustentar diante deste impasse e como matéria que mantém viva este conflito estrutural sem escamoteá-lo com uma suposta "solução". É como se pudéssemos ler as marcas desse conflito e as tentativas de dar conta dele em seus livros.

Ademais, convém destacar que essa necessidade de criação, que pode ser lida ao mesmo tempo como tendência ao nada e defesa contra o nada, é a marca de muitos trabalhos de arte. A sublimação é uma saída para essa questão, pois designa certo modo de satisfação pulsional que explicita o vazio, ao invés de escondê-lo. Na maioria das vezes em que Lacan falou de sublimação, ele se referiu a trabalhos de pintura e instalações. Por isso, optamos por percorrer autores que se dedicaram a pensar o erotismo linguageiro, escrito, lido. Observaremos que, embora nem todos se proponham a falar em nome da psicanálise, o erotismo circunscreve um campo que guarda fortes relações com o exposto acima a respeito do conceito de pulsão.


Da experiência erótica

Defender que o arranjo que Duras sustenta em sua escrita é erótico, em um tratamento particular e sofisticado, merece que mobilizemos mais referências que se entrelacem diretamente com seu texto. Para facilitar esse diálogo, apresentaremos alguns fragmentos a priori para, a partir daí, circular pelo texto de Duras.

Não foram poucos os autores que se dedicaram a pensar o fenômeno erótico e, na literatura do século XX, é possível encontrar uma farta atividade de investigação sobre os domínios de Eros. A poeta e ensaísta canadense Anne Carson, por exemplo, destaca três elementos que recortamos para nosso diálogo, extraídos de sua obra Eros, o Doce-amargo, publicado pela primeira vez em 1986. Em primeiro, a dimensão da triangulação, imprescindível para que floresça o erotismo e se acenda o fogo do desejo. A ativação da dimensão erótica requer estes componentes estruturais: amante, objeto amado e isso que se interpõe entre ambos, precisamente a diferença entre eles. Eros faz obstáculo à colagem sujeito-objeto, evidenciando algum traço de diferença. Em segundo, Carson grifa a ideia de violência, extravio e despojamento do amante capturado: "Eros é expropriação"(CARSON, 1986/2013, p.54, tradução nossa). Na experiência erótica, o amante "sai de si, transcende seus próprios limites, para buscar aquilo que lhe falta, mas que não sabe exatamente o que é. Neste momento, atinge um ponto cego"(p.9). Desta forma, "Eros é uma experiência que ataca o amante desde fora e toma controle de seu corpo"(p.204). Por último, destaca a dimensão de aspiração ao desconhecido que Eros promove: "Chegamos a suspeitar que o que o leitor deseja da leitura e o que o amante deseja do amor são experiências de desenho muito semelhante (...), necessariamente triangular, que encarna uma aspiração ao desconhecido"(p.152). Quer se trate do objeto amado fora de alcance por um triz, do significado que não se apreende por inteiro, do detalhe que faz obstáculo à consumação plena dos amantes, a tarefa de Eros é fazer com que o desconhecido siga sendo desconhecido. Sobre essa aspiração ao desconhecido, há mais a dizer. Serge Andre, psicanalista francês que também realizou incursão pela experiência literária, em um texto chamado A escrita começa onde a psicanálise termina (2000), propôs falar dessa relação de desconhecimento que liga o artista ao saber. Se quer fazer obra, segundo o autor, será melhor que o artista não queira saber demasiado, "pois o saber constitui, de algum modo, um obstáculo à criação" (ANDRE, 2000, p.169, tradução nossa).Um parêntese: sabemos o quanto Duras exalava justamente este consentimento em sua escrita. Dirá em Écrire (1993), no fim de sua vida: "A escrita é o desconhecido, antes de escrever não se sabe o que será escrito" (DURAS, 1993, p.52), para complementar em seguida: "Se soubéssemos algo do que se vai escrever, antes de fazê-lo, não escreveríamos nunca"(p. 53).

Ou seja, o escritor -- este tipo particular que desejamos sublinhar neste trabalho -- não produz sua obra a partir nem por meio de seu saber. "O artista antes cria a partir do que não sabe, do que não pode saber; a verdadeira criação encontra sua fonte em um vazio do saber"(ANDRE, 2000, p.171, tradução nossa). É que, "chegado o momento da criação, é necessário que o escritor se dirija ao mais além do saber, àquilo que, por essência, escapa ao saber"(p.171, tradução nossa). Trata-se de realizar que há um impossível de saber e de, ao mesmo tempo, autorizar-se a dizê-lo, saborear esse direito de nomear o impossível. É praticamente o mesmo que diz Duras em entrevista já citada: "é somente através da ausência, dos furos que se escavam em um encadeamento de significações, que alguma coisa pode nascer"(DELLATORRE, 2013, p. 70, tradução nossa). Veremos como em Moderato Cantabile ela adota esta prática de forma fecunda.

Contudo, não percamos algo de vista: aspirar a este desconhecido não implica que esse desejo só se legitime pela garantia da conclusão desta busca. Sustentamos antes o contrário: um texto será erótico quanto mais ele puder manter esta busca aberta, sustentando o desconhecimento que nos abre à potência do dizer. Ainda que por vias distintas, encontraremos respaldo a estas teses tanto em Barthes como em Bataille.

O primeiro, em O prazer do texto (1973/1996), defende com exuberância que os "livros ditos eróticos representam menos a cena erótica do que sua expectativa, sua preparação, sua escalada; é justamente nisso que são excitantes"(BARTHES, 1973/1996, p.75). Para Barthes, o fenômeno erótico não está em nenhum lugar específico, mas na fricção entre lugares, que o escritor procura convocar: "Nem a cultura nem a sua destruição são eróticas; é a fenda entre uma e outra que se torna erótica. O prazer do texto é semelhante a esse instante insustentável, impossível, puramente romanesco que o libertino degusta ao termo de uma maquinação ousada"(p.12).Com isso, Barthes aponta que, embora possamos forjar uma separação entre os efeitos proporcionados por um texto, entre euforia, estabilidade de sentidos e promessa de harmonia, e seus respectivos fracassos e vacilações, é na fricção entre essas duas instâncias que se produz a experiência erótica na leitura.

Já para Bataille, o domínio do erotismo é essencialmente domínio da violência, experiência de despojamento e de vertiginoso acesso à própria descontinuidade, ao próprio inacabamento. Experiência da qual podemos padecer com diferentes modos de resposta. Em sua célebre obra O Erotismo, Bataille sustenta que aquilo "que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas"(BATAILLE, 1965/2013, p.42). No erotismo trata-se sempre de um consentimento ao extravio. Ademais, o próprio Bataille aproxima a experiência erótica de uma certa experiência com a linguagem quando propõe que "a poesia conduz ao mesmo ponto que cada forma do erotismo, à indistinção, à confusão dos objetos distintos"(p.48). Há uma dimensão de perda flagrante -- Bataille dirá: voluntária -- quando habitamos a esfera do fenômeno erótico: "no erotismo, eu me perco"(p.55).

O que queremos propor, à medida que buscamos dar sustentação a esta tese, é que o erotismo que mobiliza o texto de Duras diz de uma modalidade de resposta a uma impossibilidade: seja o impossível de compreender, o impossível de dizer, o impossível de complementar junto ao outro. Na erótica durassiana, em meio a uma sucessão de cenas monótonas e de aparente normalidade, um evento irromperá para revelar, em um crescendo, as ausências que capturam os personagens.

Assumir este tratamento, dar dignidade a este desejo de dizer, requer uma ética que dê conta de acolher e de não recuar diante daquilo que, na palavra, falha em dar conta do real. Dar nome a este impossível, que aqui chamamos de fracasso, afigura-se como um esforço de resposta que possa perfazer o atravessamento em torno do objeto ausente, objeto que mobiliza o desejo mesmo em sua evanescência, para aí insuflar uma paixão pelo nome faltante. Alain Didier-Weill, psicanalista francês falecido em 2018, dizia que este tempo, uma vez alcançado, seria aquele da assunção de um novo lugar, lugar de "comemoração do ser inconsciente como tal, isto é, da partilha das faltas mais radicais"(DIDIER-WEILL, 2014, p.68). Nesse último tempo, nos diz, "o Real como impossível é posto em brasa, é levado à incandescência"(p.68).


Da obra

Uma criança que ainda não sabe, que um dia certamente haverá de saber, que não é educada o suficiente, que não se esforça o suficiente, filho constantemente solicitado a retornar à sua posição de objeto, ora da mãe, ora da professora de piano. A alternância do vagar com que essa cidade previsível se orienta, o sol que desponta, o crepúsculo que se anuncia, o escurecer que retorna, um lugar rodeado da mais absoluta previsibilidade é assaltado por um ruído que rompe com a monotonia de destinos áridos e teimosos, com seu espesso envoltório soporífero: um grito eclode no recinto.

Uma mulher é morta por seu companheiro. Anne Desbaredes repentinamente se torna cativa de uma curiosidade pela cena sucedida. Há um recorte emblemático que prenuncia sua mudança de estado. É quando Anne se dirige ao local do crime e encontra, nos fundos do café, o corpo inerte de uma mulher ao lado do qual jaz um homem, seu companheiro, agarrado ao corpo e que a chama: "Mon amour, mon amour", a boca dele beijando a dela, ambos ensanguentados.

A partir daí, testemunhamos um desejo que se apodera de Anne, "arrasada, indelével, ausente do mundo" (DURAS, 1958/1985,p.23). Ela agora retornará ao local no dia seguinte, e no outro, e no outro. Dirige-se ao balcão e pede um copo de vinho, depois mais um, e depois outro, manchando a boca deste líquido vermelho. Conhece Chauvin, homem com o qual produzirá este tecido erótico em torno de um evento que exerce mais fascínio quanto menos se sabe sobre suas motivações.

Doses alcóolicas degustadas com urgência, mãos trêmulas e corpos atormentados por uma "outra fome que nada mais pode apaziguar, apenas o vinho"(p.147). Estabelece-se um diálogo que, desde cedo, compartilha o lugar de onde provém: Anne em busca de um entendimento, de uma palavra, de um nome que a oriente diante do desvio trazido por este acontecimento. Não é gratuito assinalar que Chauvin inicia suas conjecturas sempre com a mesma frase: "Gostaria de poder lhe contar, mas não sei nada ao certo"(p.35). Há um desconhecimento central que Duras não abre mão de manter vivo.

Anne apenas circunda um desejo que não compreende. Sua abordagem é oblíqua, está siderada por algo que escapa tanto a ela quanto ao leitor. Já não é a mesma mãe alheia e envergonhada que se justificava à Sra. Giraud no dia anterior. Aliás, Anne não tem nenhuma explicação para seus gestos: não sabe porque mente, porque bebe tanto, porque está desse jeito, não sabe qual desejo habitou aquela parceria amorosa e culminou naquele crime. Apenas obedece a uma desconhecida injunção: "Não poderia deixar de vir aqui hoje, entende?"(p.41), "teria sido impossível não voltar"(p.47). A cada vez acompanhada da bebida que lubrifica esse circuito que vaga em torno de uma cena inacabada: "o vinho escorre em sua boca plena de um nome que ela não pronuncia"(p.149).

Pouco a pouco uma dinâmica se consolida entre ambos: é preciso que o parceiro fale, que sustente uma fala sobre o evento ocorrido, que prolongue esse estado de desconhecimento e de procura desnorteada. A curiosidade é cada vez mais siderante: "Como soube a esse ponto o que desejava dele?"(p.59). A cada vez, Anne se relança em uma nova busca, um novo rodeio, mais longo, com mais espera, com maior suspensão. Quer saber melhor sobre as origens: "Eu gostaria que você me contasse, do início, como eles começaram a se falar"(p.61). "Não sei nada que você não saiba"(p.65), sustenta Chauvin, antes de produzir suas fabulações. Os homens entram e saem do café, o sol se aproxima e se afasta, as noites caem a cada vez, o lho brinca ao redor do local, a dona do estabelecimento ora circula por entre as mesas, ora se ocupa de seu tricô com lã vermelha, enquanto Anne e Chauvin permanecem nesse lugar, um fora-do-tempo que sabe de sua brevidade, siderados por alguma coisa que não se deixa elucidar, sustentados pelo vinho, pela espera, por essa outra fome.

Entre os seios nus de Anne, sob o vestido, há uma flor de magnólia. No entanto, trata-se de uma flor grande demais, costurada alto demais, pregada com descuido, com pétalas ainda rígidas. O erótico escorre nessa ausência, nesse aparente descuido que incrementa as páginas da história.

O rodeio precisa se repetir: "Eu agora queria que você me contasse como foi que eles chegaram a nem mesmo se falar" (p.77), e Chauvin, mais uma vez responde: "Eu não sei nada"(p. 77), talvez tenha sido assim... tecendo a delicada mortalha que vela a cena faltante. Os personagens sabem que aquele encontro logo acabará.

O tempo está se esvaindo, os personagens acusam algo que se escorre, se esvai, cientes de um movimento que não serão capazes de deter. "Temos muito pouco tempo à nossa frente, continue"(p.121), tempo esse que não chegará ao seu termo, que não poderá suturar a ausência que os engaja. Os personagens trocam palavras das quais o leitor está excluído, é preciso consentir nessa condução durassiana. A ambiguidade não se extingue: é preciso continuar... não é possível continuar, fale mais... eu sei muito pouca coisa, não temos tempo... você está cada dia mais atrasada. O fim da história se aproxima, a rotina da cidade se restabelece rapidamente, as fundições seguirão zunindo, a areia e o carvão continuarão a ser descarregados no porto, como de costume: "Eu não poderia acreditar que isso acontecesse tão depressa"(p.157). Até o último capítulo, Anne se pergunta pelo desejo e a entrega dos amantes envolvidos na cena inicial. À frase "eu gostaria de entender por que" (p.163), Chauvin conclui zelando pela erótica durassiana: "Não vale a pena tentar entender. Não se pode entender a esse ponto. (...) Existem coisas, como esta, que é melhor deixar de lado" (p.163).


Do fracasso, das considerações finais

A assunção do fracasso, que marca a escrita desse livro, é também a apropriação de um estilo, esse direito de dizer singular, conforme ela disse em 1993:

E mesmo isso que Lacan disse, eu nunca entendi direito. Eu estava estupefata com Lacan. E essa frase dele: "Ela não deve saber que escreve isso que escreve. Porque ela se perderia. E isso seria a catástrofe", se tornou para mim, essa frase, um tipo de identidade e princípio de um "direito de dizer" totalmente ignorado das mulheres. (DURAS, 1993, p.20)

Em Moderato Cantabile, Anne Desbaresdes se depara com o impossível do amor em um encontro desencontrado. Se, nos livros de Duras, até então, tínhamos frases afiadas, diálogos intermináveis, para dizer o impossível do amor, dessa vez nem o diálogo é possível. É mesmo impossível saber do amor do homem que matou a mulher no bar. É um acontecimento que contamina de desejo a vida maternalmente enclausurada da protagonista.

O ambiente em que se passa o encontro dela com o homem no bar é hostil e indiferenciado: na hora exata todos os funcionários da usina entram e saem aos montes, como uma onda barulhenta, há o som dos guindastes, as sirenes, a praia toda por atravessar, o excesso de vinho, a velocidade com que se bebe, essa sede, esse calor. Nada disso é apetitoso. A montagem do desejo é cercada de resíduos que fazem brilhar a dama da magnólia, a mulher elegante do dono da usina, cuja posição inacessível cai e revela o inacessível do encontro amoroso, do sentido mesmo da vida e da morte, o fracasso que captura, o impossível de caber na língua, mas que insiste copo após copo a tapar o impossível, livro após livro. Retomemos as considerações de Barthes (1973/1996) sobre o texto de gozo: aquele que atormenta, esburaca o sentido habitual das palavras, das coisas, da vida. Mas a destruição não é sem certa montagem: há o encanto, o prazer, a expectativa pelo dizer que unifica e pacífica. Duras é hábil em oferecer algumas imagens convidativas para daí entremeá-las aos pontos de silêncio e enigma.

Moderato Cantabile: por mais evidente que seja, na primeira cena do livro, o filho é incapaz de dizer o que isso significa. O riso da mãe, que sabe desse desencontro entre as palavras e o que elas significam. Moderado e cantado é o ritmo desse livro. Logo depois, o encontro captura Anne Desbaresdes em um enigma que funde o amor e a morte e ela passa a buscar o que isso poderia significar, afastando-se da posição de quem ri do desencontro.

Querer saber do impossível, esse direito de dizer, essa força da literatura: fazer o real caber na língua. Moderato Cantabile é repleto de elementos que apontam para um mais-além das cenas propostas, ao mesmo tempo em que elas são permeadas por um "ainda não". Essa é a montagem erótica que se inaugura nesse momento da obra de Duras: uma insistência criadora na linguagem indissociável do reconhecimento da destruição de onde ela provém.

Uma erótica familiar e árida, barulhenta e elegante. A mulher capturada na imagem da mãe e o fracasso lamacento dessa imagem: adúltera, ainda assim seria um charme, nem isso. Nada. Todos os olhos se abrem para o desejo da mulher ébria. O álcool. Talvez com o vinho, o real possa assentar-se no exagero dos gestos e do rubor, mas ainda assim, é sempre a longa praia na volta, a criança que a chama, à noite. A miséria tingida de encanto, de riqueza, beleza, uma valsinha ao piano, um gordo salmão, a prataria. Já não é a miséria da Indochina, apresentada em Le Barrage contre le Pacifique (1950), nem a miséria do casamento e do adultério de Les petits chevaux de Tarquinia (1953), mas é, ainda assim, miserável a condição de Anne Desbaresdes, a condição mesma da escrita.


Referências

(Optamos por incluir a data da publicação da obra original antecedendo a data da publicação da edição consultada para este trabalho.)

ANDRE, Serge. Flac (novela): Seguida de La escritura comienza donde el psicoanálisis termina. Ciudad de Mexico: Siglo XXI Editores, 2000.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1973/2006.

BATAILLE, Georges. O erotismo. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 1957/2013.

CARSON, Anne. Eros: el dulce-amargo. Buenos Aires: Fiordo Editorial, 1986/2013.

DELLA TORRE, Leopoldina. La passion suspendue. Paris: Éditions du Seuil, 2013.

DIDIER-WEILL, Alain. Nota azul: Freud, Lacan e a arte. Rio de Janeiro: Contracapa, 2014.

DURAS, Marguerite. Moderato Cantabile. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958/1985.

DURAS, Marguerite. Écrire. Paris: Gallimard, 1993.

FREUD, Sigmund. Os instintos e suas vicissitudes. Rio de Janeiro: Imago, 1915/2004.

FREUD, Sigmund. Au-delà du principe de plaisir. Paris: Petit Bibliotèque Payot, 1920/1981.

GAUTHIER, Xavière. Boas falas. Rio de Janeiro: Record, 1974.

LACAN, Jacques. Seminaire 7: L'éthique. Staferla, 1959-1960.

LACAN, Jacques. Séminaire 23: Le Sinthome. Staferla, 1975-1976.


[1] O termo que Duras utiliza em francês é parole, que pode ser traduzido como fala ou como palavra.

[2] Na tradução que utilizamos, o termo Trieb é traduzido por instinto. Optamos por modificá-lo por pulsão, justamente porque não existe aí a montagem pré-determinada que se associa ao conceito de instinto.

[3] O princípio de prazer parece, na verdade, estar a serviço das pulsões de morte"(FREUD, 1920/1981, p.127, tradução nossa). Vemos nesse trecho como a satisfação diz respeito às pulsões de morte. Ou seja, resistir a elas pode constituir uma tarefa árdua tal qual construir as barragens para deter o Pacífico.

(Trabalho apresentado no evento Durassiana, realizado em agosto de 2019, e que integra a publicação dos trabalhos sob a forma de livro: Não se pode e se escreve - Ensaios sobre Marguerite Duras, organizada por Giselle Gonçalves Mattos Moreira, Renata Estrella, Ricardo Pinto de Souza e Tatiane França e publicado pela Sabiá Editorial. 
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