Mais uma vez, te solicito, Ana

29/05/2019

Mais uma vez te solicito Ana, rabisquei estas perguntas depois do dia em que desci do barco que nos trouxera de volta ao cais em um dia de ventania. Você temia as águas revoltas e eu temia o chão do porto: falávamos desse big bang sem fim chamado linguagem.

Não deveria nos espantar, Ana, que a cada instante é preciso lutar dentro da língua, pouco importando saber se estamos contra ou a favor dela. Entende, Ana, ao falar, não sabemos de que lado estamos! E o que seria defender a língua, você me perguntou? O que seria conjurá-la?

Disse que não se brinca com as palavras impunemente; que habitar a fala é um risco insensato. Desconhecemos seu lastro. Também não deveria nos espantar que os grupos humanos às vezes recorram a grandes atrocidades em nome da paixão por ordenar a polissemia da língua. O erótico traz esse paradoxo: em nome do fulgor de um encontro imprevisto, tentamos fixar e reter a errância das ligações.

E afinal o que quer dizer isso, Ana, que pela palavra tentemos dizer de um grão de instante que justamente se exclui de cada nome? Grão de instante, veja que nome tonto para o que o nome não nomeia! Às vezes consinto em ser besta a tentar dizer. Atentar dizer.

De quantos apagamentos é feito um nome? Seria uma marca aquilo que sobrevive simplesmente da substituição, de deslizamentos e deslindamentos infinitos? Aposto que uma marca é apenas o eco de uma ligação que produziu engano, uma ligação que promete e depois desaparece.

Ana, é o nome que faz o sulco ou é o sulco que clama pelo nome? E quantos encobrimentos e ficções são necessários para que esse sulco se incruste em nosso corpo, talhe nossa carne falante e irrigue nossas palavras, tornando-as molhadas como um segredo? Adoro segredos, Ana, esse é o nome que uso hoje para dizer desse saber tão singular: saber-fracassar em dizer e, mesmo assim, investir no texto. Um segredo tem um eufórico poder de contágio, Ana, mas somente para quem pode ser infiel aos por quês.

Lembra-se, Ana, quando duas palavras repetinamente se ligam e sua evocação produz um tremor? Estou à procura de um microscópio do texto para ver isso mais de perto. Estou seduzido a tentar contornar esse centro, testemunhá-lo uma vez ainda: venho achando que o tremor só surge quando a ligação já está irremediavelmente desfeita. Mas a linguagem é um utensílio ardiloso, Ana. Nem todos nasceram para ser vento ou poeta ou mulher. Você ri de mim com cara de quem prefere uma cachaça na praia após caminhar com pés descalços. Eu te acompanho intrigado. Daí te chamo: há quanto tempo não visita o milagre da consistência acidental? Somos herdeiros disso, Ana!

Sabia que o movimento mais fulgurante a animar uma vida é o truque de tentar instituir retroativamente essa substância que não existe? Você sabe disso: sou eu que não saio desse espanto de esquecer e tornar a descobrir.

Você uma vez me disse que uma metáfora é tão somente o zelo de transportar incessantemente algo que não possui centro, nem nome, nem lugar. Uma metáfora: transporte do inomeável, andaime de perfumes insinuados.

E como pode, Ana, que a metáfora opere, que ela possa insuflar febre, raiva ou vergonha no corpo do outro? Mas também, quando a tagarelice avança sem fim, em uma ecolalia odiosa, qual metáfora pode desinchar a paixão dos homens?

Em nome de sabe-se-lá qual promessa de júbilo um par de conexões se deixaria rasgar? Por que o humano é tão aderido aos sentidos? Por que resistimos tanto à destituição? Nenhuma resposta parece satisfatória aqui.

Gosto tanto do Bataille quando ele diz do prazer na dissolução, não sei até onde aquele velho desvairado fez as coisas que dizem que ele fez, mas pelo menos seu texto fez efeito em mim. Isso fez. Resistimos e gozamos da destituição, que mistério inebriante!

Eu sei, Ana, perguntar é uma astúcia sedutora. Pergunto não porque espero que responda. É porque, quando pergunto, descompleto nossa língua, essa língua de ninguém. E se esse tremor ecoar fora do que sei, e algo disso respingar em mim, já dou-me por contente. Depois daqueles tempos de ventania no mar, invento que agora carrego uma marca que diz o seguinte: as palavras nos falam, e não acho triste que ninguém esteja nos ouvindo, Ana. Em alguns dias, existe um movimento de soslaio que me solicita a falar como se soubesse da mensagem que veiculo.

Mas é claro que não sei de nada, Ana. Tento transportar isso que não entendo, sem cair em algumas imposturas. Esse é meu brinquedo: fabricar promessas, descobri-las perdidas e homenageá-las por um tempo. Seguro o trevo de uma poeta caipira e escrevo acompanhado de uma música ao piano, composta em 1982. Só