Arcaica Lavoura

28/09/2017

Outro dia me fizeram perguntas, Ana, se endereçaram às minhas dúvidas mais íntimas.

perguntaram se o amor é um diálogo entre bárbaros,

se o desejo se furta diante dos nomes que buscamos para ele ou se somos nós que nos furtamos de assumi-lo, ainda que de soslaio

se a fagulha erótica tem medo da luz ou se apenas gosta da intermitência

se a palavra ofusca ou adorna a dignidade de um gesto

se um pacto entre humanos degrada ou honra o inapreensível

se os predicados têm de fato o poder de aprisionar a potência de um sujeito ou se, por outro lado, são eles que parcialmente dão acesso a algum sabor de vida

se os grãos mudos, agudos, angustos ou dilatados, que compõem a vida, uma vez colhidos, têm algo a transmitir

se é possível de fato amar uma mulher

se a assunção do feminino passa por perdoar e nos deixarmos tapear um pouco por sua errância

se um sacrifício não é uma impostura para tentar cobrir a pobre humanidade de nossos pais

se um pai que mortificamos pode legar algum acesso à vida

se o tempo existe, Ana

se alguma nudez é possível aos seres falantes

se no sexo é possível nos despirmos de imagens e de retórica

se uma dedicatória muda pode ser signo de um desejo

se os joelhos também foram feitos para se derreter em febre

se o ódio é a matéria-prima do amor ou de onde vem esta habilidade de adorar uma ideia em sua ausência e em sua inconsistência

se um porco assado por dias é um milagre

se a viagem de cada um não conduz sempre à morte, ou seja, ao encontro com um desejo

se um cão lê

se a palavra de verdade jamais é, de fato, uma palavra de amor

se há algum traço da imagem abaixo que ainda esteja vivo em mim (já que não me lembro de sua ocasião)

se a neurose é a antecâmara do nascimento

Não soube responder, Ana... Fiquei pensando apenas que nascer é suportar construir respostas a partir dos nomes herdados dos outros. É homenagear o perdido sem recuar de novamente perder algo. É ousar servir-se dos restos do engano que esteve em nossa origem. É furar a língua e ao mesmo tempo sujar-se nela. É ter a coragem de ter um corpo que chama e se deixar chamar. É consentir que em cada desejo levado adiante há uma perda vitalizante. É descobrir-se um entre vários, submetido ao impossível. Nascer é consentir em saborear a vida fraturada junto aos demais mutilados. É emprestar nossas ruínas a uma misteriosa transmissão junto ao outro. Recuar aí é um direito, uma impostura e também uma lástima.