Enquanto Rina se deita

28/08/2019

Enquanto Rina se deita em sua cama, olhos verdes e velhos, a pele tão fina, a respiração ofegante, aproximo-me dela e sento em uma banqueta de madeira. Ela acabou de jantar e lhe faço companhia por uma hora. Não dizemos uma palavra esta noite. A TV está ligada, mas o volume está mudo. O sinal é ruim, mas suponho que esteja passando um programa religioso. Um cão circula pelo quarto, ora subindo em sua cama, ora buscando seu pote de água, ora pedindo um carinho a mim. Esse cão tem mais 90 dias de vida, seu coração irá parar de bater sem maiores explicações e, em poucos meses, eu me mudarei desta casa. Em breve, este momento será recoberto com palavras, e cada narração afastará um pouco o bruto desta cena. Percebe? Esta cena já se passou e, no entanto, eu a habito hoje para intervir nela. E daí te pergunto: esta cena já aconteceu ou está acontecendo?

'É a palavra que produz esse movimento', Rina poderia dizer, em seus dias de bruxa sensível.

'Não é a palavra, vó, é sua sombra...', digo hoje, anos depois de sua morte.

'Você escreveu uma palavra e esta palavra pedia complementos'. Acho crível da parte dela.

'Elas pedem complementos para descobrirem sua sombra, não acha? Querem achar a palavra ausente.'

Rina me olha com óculos embaçados. Retiro-os de seu rosto e os limpo com minha camiseta. Enquanto isso, algo me ocorre.

'Sabe de algo, vó? Estas palavras querem entrar mais fundo nesta cena! Não sei por quê!' É fato que não pretendia abrir esta porta hoje até escrever algo aí acima. Não sei qual palavra me conduziu até aqui. Talvez a única forma de saber seja atravessando este quarto e este ano meio distante.

Posso ser profundamente odioso para com a palavra. Lânguido, preguiçoso, revoltado com sua insolência: elas insistem em querer ser, insistem em querer dizer, insistem em colonizar. Nem sempre estou disposto a partir em viagem com elas. Mas já não há caminho de volta para quem se deixa falar.

Rina olha para a TV, depois olha para mim e sorri. Pouso minha mão sobre a dela. Lembro-me da vez - tão longínqua - em que lhe neguei um gole de meu suco de laranja e ela ameaçou ir embora de um passeio. E da vez em que ela me esbofeteou no elevador do prédio. Chorei mais pelo susto que pela dor. E da vez em que pediu para eu cantar uma música japonesa em um quarto escuro. Isto que lembro: pedaços de sonho vestidos de frases que podem ser narradas de outras formas, cada versão produziria um sabor distinto. E daí te pergunto, outra vez: estas cenas já aconteceram ou estão para acontecer? Percebe o furor de que me avizinho? Dependendo do que disser, isso terá certas consequências. Aquilo que posso dizer hoje pode incidir naquilo que suponho que havia antes de eu buscar palavras para dizê-lo. 'Não é incrível, vó?' Estou próximo de um entusiasmo.

'Mas o passado, é inencontrável, Laerte'. Rina balbucia e adivinho o que me diz.

'Não busco encontrar o passado, vó... É que, ao visitá-lo em estado de errância, toco outra coisa.' Digo isso enquanto tenho no colo uma foto sua, de final dos anos 40, início dos 50. Rina está no meio, entre duas irmãs.

Tentar escrever a sombra da palavra... A sombra, o verso, o sonho, o oco, o susto, o suspiro, o inverno, o sono da palavra. Fazer a palavra começar. Fazê-la parir. Fazê-la despertar, esquecendo-se de sua fugacidade. Fazer a palavra tropeçar na própria urgência e deixar entrever o que buscam recobrir. Quando tropeça, a palavra diz melhor. A palavra, como húmus, detritos que vão sendo depositados, restos que fecundam. O que representamos do passado pode se abrir a este ímpeto infinito de dizer, sabendo que marcas antigas podem restar, enquanto outras são criadas sem que possamos calcular o alcance do novo.

Meu corpo, esse corpo de encontros, de desaparições, corpo de versões, corpo somente um pouco dito, com tanto ainda por se dizer, feito daquilo que também jamais poderá ser dito: disso que não é palavra, e que a palavra tenta balbuciar, exibição daquilo que elas falham em apreender. As palavras vestem outra coisa, transportam outra coisa, contornam algo que desconhecem. Todas órfãs, todas cegas, todas estrangeiras. Sussurro no ouvido de minha avó: 'não amo tanto as palavras, vó, mas antes aquilo de que a palavra é resto. Recorro a elas, e posso estar aqui por agora.' Com as palavras, e o espaço infinito entre elas, tateio esses restos incógnitos.

Temos cada um uma xícara de café com leite nas mãos. Essa bebida tem gosto de minha infância. Rina tem também algumas bolachas maizena que lhe trouxe da cozinha e mergulha pacientemente cada uma no seu copo antes de comê-las. Não temos pressa, deixamos que a cena dure o tempo que for necessário.