Diante da dor dos outros

16/06/2016

Li há poucos dias o livro "Diante da dor dos outros", da Susan Sontag.

O texto se propõe a tentar pensar como nos relacionamos com as representações do sofrimento humano: desde a pintura, forma mais clássica, até a fotografia e vídeo, formas mais recentes. Seu levantamento inclui a cobertura jornalística das guerras, feitas nos últimos 150 anos, além do esforço de registro feito através da pintura ao longo de vários séculos. Além disso, o ensaio procura pensar também nas possíveis significações dos gestos de quem retrata e de quem visualiza essa produção.

Por exemplo: algumas fotos que procuram sensibilizar o público, são alteradas, isto é, são manipuladas para adquirirem uma carga mais dramática ou mais 'artística', podendo tender tanto a querer 'chocar' como a 'suavizar' o efeito sobre o público. Algumas dessas fotos são elucidadas no texto.

É interessante ler a Susan Sontag: o texto é escrito de forma tão simples ao mesmo tempo em que é profundo e sereno quanto às implicações.

Não posso deixar de notar uma curiosidade: li o livro com a internet ao lado e, em 30 segundos, tenho acesso a todas as referências que ela cita: Goya, Capa, os fotógrafos das guerras da África, do Vietnam, as imagens do ataque ao World Trade Center, a guerra de Sarajevo, do Afeganistão, Iraque, etc.

Como ela mesma reconhece, é impossível julgar o que se passa do lado de quem vê as imagens (haveria de se refletir caso-a-caso) e que destino é dado ao efeito do impacto da visão de um semelhante em estado de sofrimento.

Compartilho aqui 3 passagens:

1) Quatro gravuras de Goya, que dedicou 82 desenhos para registrar seu testemunho da guerra entre Espanha e a França de Napoleão entre 1810 e 1820. Cada retrato é acompanhando de uma legenda muito peculiar.


2) O retrato da célebre foto da guerra civil espanhola, feita por Robert Capa, sempre enigmática quanto ao que, de fato, a cena retrata (a leitura principal é a de um soldado no momento em que é baleado). A foto, publicada na Time, tão inédita na cobertura ágil de uma guerra, é veiculada ao lado de um anúncio publicitário que parece querer fazer equivaler as informações dispostas (duas informações para consumo: a morte de um soldado e o anúncio de um produto para cabelos)


3) A mórbida tradição do regime Khmer Vermelho que, durante os anos 70, fotografou seus milhares de condenados minutos antes de sua execução, para fins 'burocráticos'. A foto que mostro aqui foi a que mais me tocou em toda essa imersão, e não sou capaz de compartilhar em texto o abalo que me produziu.

Tento dizer algo da minha posição: a mim é ainda impossível dar uma resposta que não resvale em uma leitura trágica-cínica sobre a crueldade da nossa espécie, e que ao mesmo tempo não incorra em um espanto de um desavisado que afasta de si o conhecimento da história de atrocidades já cometidas. Reduzir o horror a um apelo de que 'é preciso amar uns aos outros' é, a meu ver, um desrespeito para com a nossa história.

Diante da repetição a perder de vista, dos escravos entregues aos leões para deleite da plateia, os cristãos perseguidos, as mulheres e os hereges queimados vivos na fogueira da Inquisição, o genocídio dos índios, dos armênios, russos, moçambicanos, angolanos, dos paraguaios, os linchamentos dos negros, os judeus dos campos de concentração, os perseguidos das ditaduras latino-americanas, os atos de violência individuais, os homens-bomba e o sem-número de exemplos recentes e contínuos que nos ocupam os noticiários, que responder?

Fico suspenso entre duas negações: dizer 'eu não acredito!', em horror, ou 'para onde estamos indo?' seria se dizer desavisado do reconhecimento de que isto tudo segue acontecendo . Dizer 'é assim mesmo', 'a natureza humana é violenta mesmo', é igualmente inaceitável no que pretende neutralizar o potencial do espanto, da compaixão e da resistência à liquidação do outro.

O que resta de possível exprimir talvez sejam estes pontos silenciosos que vibram, perturbam e reviram o estômago e a garganta: é aquilo que sobrevive à impotência sem desrespeitar a dor do outro. Retorno ao silêncio naquilo que nem texto nem imagens alcançam dizer.