Da fascinação à dessideração na escrita de Pascal Quignard

08/05/2019

BREVES ANTECEDENTES

Podemos encontrar na escrita de Pascal Quignard (nascido em 1948) uma produção intrigante e profícua, passível de ser fruída sob múltiplas perspectivas. Autor que flerta com romance, poesia, ensaios, tratados, Quignard trabalha realizando um entrecruzamento de múltiplos gêneros, conseguindo, desta forma, surpreender o leitor através de efeitos de fragmentação e descontinuidade na escrita, enlaçando incursões a diversos tempos íntimos.

Alguns elementos adquirem valor de destaque como figuras de sua poética: a falha da linguagem, o silêncio, a música, a perda, o sexual, o anterior, a origem. Em sua obra, Quignard escolhe com frequência recuperar cenas e personalidades que permaneceram ignoradas, marginalizadas pela História e excluídas da tradição, ou então recolher fragmentos esquecidos no discurso oficial e que passam a ter valor agalmático* como objeto de ligação com uma origem por ser reconstruída através da criação literária.

É o caso de Butes, personagem de destaque ínfimo na história dos argonautas escrita por Apolônio de Rodes, e que é alçado ao plano central, a ponto de dar título ao livro: enquanto Ulisses, herói da Odisséia, precaveu-se das Sereias fazendo-se amarrar ao mastro e ordenando para que os tripulantes tampassem seus ouvidos com cera, Butes foi o único que, não tendo se alinhado com as ordens da embarcação, quando diante do canto fascinante vindo do rochedo, « deixa o posto dos remadores, renuncia à sociedade daqueles que falam, salta por sobre bordo, se joga no mar » (2008, p. 14).

A predileção de Quignard por um certo tpo de experiência ética com a obra pode ser localizada em alguns momentos de sua obra (e mesmo em depoimentos e entrevistas). Sua concepção de leitura se inscreve numa vertente que privilegia o consentimento com o extravio de si provocada pelo contato com uma obra literária:

Aquele que segura um livro se expõe ao risco de submeter-se a uma emoção, a uma página repentina que faz surgir um acontecimento dramático (...) existe um perigo. Eu adoro este perigo, não sei para onde estou indo quando abro um livro. (Entrevista, YouTube 2008)

Escolha crítica

Para o presente trabalho, escolhemos passagens onde Quignard tece uma reflexão sobre os campos da fascinação e da dessideração. Para este exercício, propomos identificar e ligar três aspectos que dão corpo a esta leitura: (1) uma apresentação de fragmentos biográficos do autor, recolhidos em algumas obras; (2) a construção poética de uma teoria sobre a fascinação e a dessideração a partir de uma leitura dos romanos; (3) a leitura de Quignard sobre o uso da técnica fragmentária.

A hipótese que este texto pretende explorar diz respeito ao esforço dedicado pelo autor a explorar em seu corpus poético os pólos da sideração e dessideração. Este trabalho pretende chamar atenção para o fato de que é na própria obra que Quignard especula, dá corpo e permite entrever uma teoria sobre a fascinação e a dessideração.

Para fundamentar esta hipótese, tomamos como referências centrais três obras: Vie Secrète, Le Nom Sur Le Bout De La Langue e Une gêne technique à l'égard des fragments. Trechos de outros livros eventualmente podem ser convocados para corroborar esta tese.

Com isso, começamos a grifar a presença de um ponto de estupor que causa a escrita de Quignard. O autor propõe, através da escrita, se aproximar deste ponto de fascínio e, ao mesmo tempo, recrutar o leitor a esta experiência por uma trilha que mescla desconhecimento, captura, falha, perturbação, queda, encanto.

Ainda, convém dizer que este estudo é parte de uma pesquisa maior em andamento, que procura recolher as notações dos estados que causam a escrita na obra de Pascal Quignard. Neste artigo em particular, propomos um recorte deste escopo para identificar relações mais específicas. As noções de fascinação provocada pela linguagem e pela imagem e a noção de dessideração estão presentes na própria forma de conceber o texto, pelas rupturas que provoca, pelas lacunas que insinua, pelas bifurcações em que lança o leitor. Passaremos agora a refletir sobre cada um dos eixos apontados para daí tirarmos as conclusões pretendidas.


PRIMEIRO EIXO: A EXPERIÊNCIA ÍNTIMA NA CAUSA DA ESCRITA

Reunimos duas cenas de valor determinante para ilustrar o efeito de captura que tiveram sobre o autor e para pensar no lento, silencioso e obscuro percurso que atravessaram, antes de encontrar alguma possibilidade de representação e nomeação. Em uma delas, retratada em Le Nom Sur Le Bout De La Langue, Quignard está com cerca de 2 anos e observa o episódio em que uma palavra falta à boca da mãe.

Minha mãe ficava sempre na extremidade da mesa de refeição, com as costas voltadas para a cozinha. Bruscamente, minha mãe nos mandava calar. Seu rosto se crispava. Seu olhar se distanciava de nós, perdia-se no vago. Sua mão se estendia sobre nós, em silêncio. Mamãe procurava uma palavra. De repente, tudo parava. De repente, nada mais existia.

Perdida, distante, com os olhos fixos sobre nada, faiscantes, ela tentava fazer-lhe chegar, no silêncio, a palavra que tinha na ponta da língua. Ficávamos, nós também, na ponta de seus lábios. Ficamos à espreita, como ela. Nós a ajudávamos com o nosso silêncio - com toda a força de nosso silêncio. Sabíamos que ela reencontraria a palavra perdida, a palavra que a desesperava. Ela, expectante, alucinada, com o peso vacilante no ar.

E seu rosto se abria. Ela a encontrava: pronunciava-a como uma maravilha. Era uma maravilha. Toda palavra reencontrada é uma maravilha.. (QUIGNARD, 1993, p. 55-56)

Identificado a esta fenda, Quignard se torna taciturno e este traço marca-o de forma indelével na escolha de seu ofício, embora ele próprio admita que escrever sequer foi uma escolha: « não escrevo por desejo, por hábito, por vontade, por profissão. Eu escrevi para sobreviver. Eu escrevi porque era a única maneira de falar me calando » (1993, p. 62).

A segunda cena pertence ao livro Vie Secrète. Com efeito, a leitura deste livro consiste em uma experiência perturbadora. As páginas pedem pausa, pedem fôlego, abrem portas tão amplas que o prosseguimento no texto passa a suscitar uma espécie de medo: de deixar que a beleza que tal leitura ilumina se perca novamente pelo caminho. Medo de negligenciar o silêncio tocado. Cada capítulo percorrido parece descongelar experiências íntimas do leitor que há muito não recebiam o calor de uma palavra. Quignard dá nome a tantos silêncios que nos vemos diante de um impasse ético: seguir o fio do livro ou seguir o fio da própria experiência íntima novamente convocada?

Neste romance, o evento eleito como decisivo para a mobilização da obra é o encontro ocorrido, décadas atrás, entre Quignard e sua professora de piano, de nome fictício Némie Satler. Durante 96 dias, eles vivem um romance clandestino, arrebatador, dissimétrico, interrompido por uma mudança não comunicada que surpreende Quignard.

Os trechos em que Quignard apresenta este encontro parecem representar um imenso esforço para manter viva a perplexidade do passado e oferecer-lhe um relato não apaziguado pelo tempo. O amor vivido com Némie parece a todo momento abafado por algo invisível, não apenas pelo fato de que eram encontros clandestinos, escondidos do mundo, mas por algo contido que jamais pôde ser reconhecido entre os dois amantes. Há como que um excesso de experiência que vai se instaurando neste encontro, detritos que se acumulam ao redor do que resta de visível e dizível, e que é tomado como violento e perturbador ao casal. Recolhe-se pelas páginas deste livro uma escuridão derramada, silêncios que o tempo lentamente secreta.

Quignard narra um dia se aproximar dos arredores da casa de Némie e encontrar um caminhão carregando móveis. Este livro, escrito três décadas depois deste episódio, será a tentativa de endereçamento de Quignard a tal separação:

Eu vi os objetos nas caixas de madeira que rodeavam o caminhão de mudanças. (...) Eu não a vi. Vi as suas costas no carro de seu marido. Então, via o Simca branco afastar-se lentamente. Ultrapassou o caminhão de mudanças. Virou à direita e depois contornou a nave da igreja. Tomou a estrada de Paris. Depois desapareceu. Não consegui dizer a minha dor a ninguém. Exprimo-a aqui. Ou melhor, dissimulo-a nessas páginas. (p. 98)

Uma relação amorosa é o lugar privilegiado destes restos de nossa história que são reabertos por uma chave obscura emanada pela presença imperscrutável do outro. Quignard deixa pelo caminho pistas de uma incursão às origens, aos vestígios que a história falhou em dar contorno. Seu esforço parece ir ao encontro deste gesto ético de tocar nos pontos de abandono de nossa história, talvez justamente os mais traumáticos, mais petrificantes, mais exasperantes, porque permaneceram sem uma palavra justa.

Tanto em um como no outro dos eventos relatados, uma cena de aparente continuidade é interrompida por um gesto, um ato inesperado. Uma subtração repentina tem lugar e Quignard, de testemunha, é tomado por esta irrupção de real para o qual faltam palavras: um efeito de surpresa se processa, uma desestabilização, a evocação de uma ausência se instaura, uma suspensão indefinida: vazio desde onde a palavra pode brotar.

Aqui, convém tomar qualquer um destes acontecimentos escritos como alegóricos. O que desejamos demonstrar é menos o valor factual e objetivo de cada evento, e mais a forma como Quignard procura reconstruir uma cena íntima, que carregue os traços de mobilização dos afetos que ali o concernem.

Esta proposta poética, que aqui se ocupa destes pontos de perturbação, demonstra a fissura onde se forjou, como escrevendo o terreno que lembrada separação, ao invés de suavizá-la ou de transpô-la. A escrita de Quignard é parte de um projeto de visita a estes momentos de queda que lançam o sujeito em uma condição de desamparo. Veremos como esta ideia se aproxima da condição de dessideração a seguir. A escrita, trabalho de testemunho de um encanto que se avizinha da cena perdida, realiza esta travessia por meio da qual reabilita um acontecimento petrificante e se oferece a uma ressonância junto a um leitor.

Aqui, situamos um paradoxo: se é a partir da separação que um escritor pode escrever e elaborar esta perda, também passa necessariamente por aí o trabalho de contornar, cingir este perdido dentro de si, mantê-lo vivo no trabalho poético de uma interlocução com a ausência. A escrita consiste neste gesto de bordejamento de um silêncio insuperável e que, na poética de Quignard, consiste na matéria inesgotável para a fabricação de novos pontos de comoção e fracasso da linguagem. Não por acaso, dirá em Paradisíacas: « Podemos nos cercar de alegrias infinitas quando sabemos jogar com aquilo que perdemos» (p. 193)


SEGUNDO EIXO: UMA ALEGORIA PARA A FASCINAÇÃO E A DESSIDERAÇÃO

A fascinação

Quignard investiga as origens e sentidos da palavra fascinação. Para os romanos, fascinus correspondia ao que o phallus significava para os gregos: a representação do membro masculino excitado. Fascinado é aquele que encara o órgão sexual masculino ereto. Segundo Quignard, os romanos « chamavam fascinatio à relação que se estabelecia entre o sexo ereto da figura masculina e o olhar que o surpreende nessa contratura » (1998, p. 107). O fascinus é este objeto que provoca uma « metamorfose erigente, perturbadora, petrificante, engrossante, tumefaciente, corante » (p. 111) naquele que o encara.

O que vale salientar de saída é a potência da ligação entre o olhar e uma certa imagem, que adquire valor central para o sujeito. Se em Butes, por exemplo, é o canto, a música que enche a alma do sujeito « desejo de se aproximar em estado puro » (2008, p. 17), tão forte que « arde de desejo de ouvir » (p. 5), em Vie Secrète, é uma imagem que evoca sua origem, que insinua o lugar de outro tempo. Diante desta imagem, o sujeito não teria como resistir ao efeito de arrebatamento e extravio de si: « A partir deste olhar os corpos encaixam-se como as presas nos maxilares dos carnívoros » (1998, p. 106). Quignard a descreve como uma relação voraz: o sujeito que olha é devorado pela forma que o captura. « Fascinus subitamenteencontramo-nos cara a cara com a encenação que faz de nós o seu elemento " (p. 114) com "a imagem que nos devora » (p. 115).

A fascinação (ou sideração, tomaremos ambas como sinônimas) é escolhida como figura privilegiada com a qual Quignard busca representar a relação do humano com suas origens, com a cena de sua concepção, imagem estruturalmente faltante. « A presença fascinante é a presença que desencadeou a vida em nós, que "nos" tornou presente » (p. 115). Por tornar-se falante, sexuado e social mediante processos de alienação na cultura, o humano é vulnerável aos efeitos desta imagem, na medida em que ela está perdida. Estar fascinado, concluamos, é estar sob o efeito da presença de nossa origem inomeável e irrecuperável.

Esta reflexão com a imagem de nossa origem tem lugar central na poética quignardiana, e é citada em diversas publicações. Em Vie Secrète, Quignard assim a nomeia:

O que é mais nós mesmos que nós mesmos consiste naqueles que nos fizeram, na figura à qual se dobraram quando nos fizeram, isto é, aqueles que nos olham do fundo da figuração. 

A nossa figuração foi o nosso corpo - que resultou deste abraço em que nós não estamos, em que nós nunca estaremos, no qual começamos a ser sem que existíssemos (...) 

É a primeira fascinação. (1998, p. 116)

Esta cena, para sempre inacessível, ao mesmo tempo em que não encontra representação consistente, nós vivemos sob o domínio de seu véu. A fascinação está entrelaçada a esta ausência que ocupa o centro de nossa existência. Surgimos em torno da imagem à qual jamais teremos acesso. Em O Sexo e o Assombro, ele retoma o mesmo raciocínio: "Viemos de uma cena onde nós não estivemos. O homem é aquele para quem falta uma imagem" (QUIGNARD, 2017, p. 3).

Esta cena parece mobilizar tamanho grau de mal-estar para Quignard, que ele a retoma insistentemente em diversos livros. Em A noite sexual, introduz o mesmo raciocínio: "Eu não estava ali na noite em que fui concebido. (...) Uma imagem falta na alma. Dependemos de uma postura que teve lugar necessariamente, mas que nunca se revelará aos nossos olhos. A esta imagem que falta, a chamamos 'a origem'" (QUIGNARD, 2014, p. 11). A fascinação seria uma herança da biologia, do comportamento instintivo, da atração animal e, ao mesmo tempo, uma força em direção ao passado.

Ao longo de Vie Secrète, Quignard inventaria os efeitos que esta imagem faltante exerce sobre o fascinado: é uma imagem que petrifica, hipnotiza, imobiliza, fixa, prega, domina, subjuga, inibe(são todos termos que ele utiliza). Quando diante de seu efeito capturante, « o hipnotizado regressa ao estádio da criança impessoal, recupera a submissão hipnotizada do bebê à voz e ao olhar da mãe » (p. 119).

Nas palavras de Quignard « a fascinação é um não-ver que precede o ver pessoal, um ver aglutinativo, um ser-engolido pelo olhar do outro que desencadeia o desejo de ver, a qualquer preço, o que lhe acontece » (p. 128). Em A noite sexual, diz deste caráter ambíguo e mútuo: "A fascinação petrifica a vítima estreitando seu círculo em torno dela. O fascinante petrifica o predador, que já se associa ao fascinado" (QUIGNARD, 2014, p. 195).

Ademais, a condição fascinada não está no campo da escolha. Em O Sexo e o Assombro, Quignard afirma: "fascinus detém os olhos a tal ponto que eles não conseguem desviar" (2017, p. 3). Quer dizer que é pela nossa constituição que somos suscetíveis a tal efeito, a tal encontro.

Fulguratio, fascinatio não fazem mais que dizer este reencaixe num relâmpago, mais rápido que um relâmpago, da forma mais recente na forma mais antiga. 

A fascinação é a prova do passado.

Melhor ainda: ela é o abraço do passado (1998, p.163)

A fascinação é tributária, neste caso, dos momentos primeiros de todo bebê que, em sua neotenia constitutiva, se encontra inteiramente dependente da atenção e dos cuidados de um outro que lhe acuda. Antes mesmo de ter um corpo unificado, articulado, antes mesmo de ter domínio sobre as palavras, de discriminar-se como uma unidade separada do corpo materno, o bebê encontra-se alienado ao olhar, aos auspícios e ao interesse desse outro. Nossas primeiras reações coordenadas como humanos parecem alinhar-se a este efeito morfogênico de imitação diante da imagem do outro. Sorrimos ao sorriso do outro.

Nestas sendas, fascinação e sedução são aspectos contíguos, como atesta a seguinte passagem, na qual Quignard descreve o sentido de sua origem na cultura romana: « só há um sexo (o fascinus), uma domus (a vulva materna e obscura), uma dominatio (a morada, a dominação). E, por fim, de forma circular: só uma sedução (a fascinatio) » (p. 279).

Lembramos ao leitor a etimologia de sedução. Derivada do latim se-ducere, tal efeito prima por conduzir à parte, desviar alguém de uma determinada tendência. A sedução conduz para alhures. Nesta trilha, tanto a sedução como a educação se localizam em um mesmo campo etimológico, já que educar deriva de ex-ducere, que denota a ideia de ser conduzido, guiado para fora. Em Vie Secrète, éa sedução e o amor que separam o homem da submissão ao social, da voz nacional, da obediência e da imitação do comportamento do grupo.

Se o meio social exerce autoridade sobre os indivíduos - como uma espécie de sideração coletiva - a experiência de sedução e do amor separam o homem da sociedade e o conduzem a um campo à parte, um espaço de silêncio, para além da lei do grupo. Quignard é contundente quanto a esta ideia: « O individual é a fascinação dilacerada. Não apaziguada: dilacerada » (p. 232). O individual, frisemos, diz do homem que se separa da injunção magnetizante do coletivo.

As observações de Quignard são muito próximas das hipóteses dos psicanalistas. Alain Didier-Weill nos oferece uma definição da fascinação que coloca em relevo a dimensão dramática deste fenômeno, ao afirmar que « a sideração é o que acontece de maneira transitória a um sujeito quando, em um tempo efêmero, ele é violentamente conduzido ao significante original de não-conhecimento absoluto, no qual, siderado, ele é atingido, lívido, despojado de tudo que possuía » (Didier-Weill, 52)

Paul-Laurent Assoun, em um diálogo sobre os efeitos de captação da sedução sobre os sujeitos, tece alguns comentários enriquecedores. De início, atesta que "a encenação originária da psicanálise consiste neste quadro de um sujeito literalmente siderado por um certo espetáculo, em que se exibe o desejo do outro" (ASSOUN, 1999, p.75). A partir desta condição de desamparo no qual é somente pela atenção do outro que sobrevivemos, ficamos singularmente marcados pela questão que nos atravessou sobre nossa identidade para, desde aí, produzir uma resposta: Quem sou eu para o outro? Que deseja de mim? É no âmbito desta relação de captura que o bebê se torna, desde então, seduzível:

A sedução (...) toma efeito ao produzir sobre o sujeito um efeito de captação: a armadilha da sedução consiste em prender das redes de uma imagem, da qual o "seduzido" não pode daí por diante se abstrair. Seduzir é primeiramente "puxar de lado", colocar o sujeito à parte (seducere). A sedução é este efeito que desvia o sujeito, numa parte dele mesmo, do resto das imagens do mundo e dos viventes, para aprisioná-lo numa imagem (1999, p. 75)

A imagem a que Assoun se refere não é outra senão a imagem que Quignard desenvolve em seus livros e que recortamos para este diálogo: a imagem sobre a origem, ou dito de outra maneira, a imagem que responderia ao enigma sobre o que este primeiro outro quer do sujeito. "O seduzido encontra - fora, portanto - a revelação de seu desejo" (p. 75).

É valioso acrescentar que, para Quignard, a fascinação é também a condição inicial do amor. É a partir desta condição de captura que podemos experimentar a relação com o mistério, no qual o outro evoca uma parte de minha origem, uma parte de minha perda. Esta relação consiste no « primeiro traço do amor » (1998, p. 108), já que « o amor deriva da fascinação » (p. 109). O amor, para Quignard, é tomado como « o que faz viver uma alma dentro do que não é o seu corpo » (p. 397).

Trata-se, portanto, de reconhecer o poder de captura que a fascinação exerce sobre o sujeito humano, não apenas, como tentamos dizer aqui, porque isto faz parte de nossa constituição psíquica, mas sobretudo porque estamos sempre sujeitos a tais efeitos desestabilizantes. Algo que nos causa e que não é nosso corpo, existe fora de nós. É o próprio objeto fascinante. Como tal figura não estaria imbuída de um poder tão intenso?


A dessideração

Toda separação evoca - em um tempo posterior - a condição humana fascinada: ela está remetida à imagem faltante que nos sobredetermina e nos subjuga. Há uma cena que nos petrifica e à qual podemos sucumbir em estado de febre em direção ao passado. As rupturas do presente fazem ecoar os restos que se perderam de nosso ser nos momentos decisivos de nossa constituição como seres sexuais e falantes.

Em Vie Secrète, Quignard chega à noção de dessideração enquanto busca em suas peregrinações às ruínas da história romana algum elemento que pudesse se opor à potência fascinante. Ele expõe sua inquietação: « Qual poderia ser o polo antimágico que se oporia à fascinação? O que é que era capaz de desfascinar a sexualidade romana? » (QUIGNARD, 1998, p. 168). Quignard postula a hipótese de que o polo oposto à fascinação corresponde ao desejo. A resposta se revela espantosamente simples, uma vez que se recorra à etimologia: dessideração vem de desiderium, palavra ligada a desejo. De acordo com Le Quintrec, que escreveu sobre a etimologia da palavra desejo, « o vocábulo é construído sobre a negação de um termo do latim : sidus ou sideris (seu genitivo), termo que pode significar constelação, astro ou estrela » (Le Quintrec). Para ele, dessideração é inicialmente a « nostalgia de uma estrela, o pesar por um astro perdido, a falta dolorosa de um objeto celeste que desapareceu » (Le Quintrec). Em outras palavras, significa deixar de contemplar o astro, desviar-se dele: « O desejo remete desde então ao abandono da estrela, à interrupção da fascinação que ele exercia sobre nós » (Le Quintrec). Desejante é aquele que desfez-se do efeito de sideração de uma força atratora. Quignard nos diz : « À fascinação sucede a dessideração » (p. 226).

A dessideração está no polo oposto à sideração, à petrificação do sujeito diante de sua origem, do traço que o divide e o remete ao antes de si. « Fascinar opõe-se a desejar » (p. 285), ou, dito de outro modo « O desejo nega a fascinação » (Vie Secrète, 285, 169).

Aceder à dimensão do desejo dependeria de uma separação deste estado cativo diante do outro, seja de seu olhar, de seu poder, de sua imagem, de sua promessa de religamento. O dessiderado é aquele que busca a imagem, mas não aquele que a encontra. O dessiderado é aquele que sustenta uma relação com o perdido, com aquilo de que se foi apartado.

É neste estado em que tanto o pensamento, quanto a fala e a escrita podem advir. O mesmo vale para a leitura. Quignard afirma: « Ler dessidera a alma. Descoletiviza a língua nacional depositada no interior de si. (...) Ler espaça o pensamento » (p. 218). Interpretamos sua posição: ler, pensar e escrever separam, recortam uma forma, impõem um intervalo em um todo indiscriminado, disforme. A linguagem pode ser um fator separador da fascinação. A linguagem afasta o olho da imagem através da mediação simbólica e imaterial da palavra.

Da separação, da fissura inerradicável entre coisa e palavra, neste campo infinito e inabordável, nesta hiância tão prenhe quanto muda, nasce a palavra que Quignard está sempre à procura, tentando arranhar esta membrana e voltar deste abismo com alguma letra nova, com algum nome outro. Neste sentido, a dessideração terá absoluta relação com o luto. Para Quignard, afinal, a desunião é dessiderante. Só deseja aquele que perdeu uma parte de seu ser.


TERCEIRO EIXO: OS EFEITOS DE SEPARAÇÃO DOS FRAGMENTOS

Quignard aplica em seus textos o recurso da fragmentação, do desligamento entre ideias e parágrafos. Ao recorrer a tal recurso de interrupção, provoca no leitor este movimento pendular entre sideração e dessideração. Trata-se, aqui, de abalar, desequilibrar aquele que segura um livro nas mãos. O fio do texto insinua um caminho, para logo se interromper, e o leitor é largado em um estado de abertura: precisa responder à suspensão de sentido.

Em Une gêne technique à l'égard des fragments (2005), ensaio publicado originalmente em 1984, Quignard empreende uma tentativa de identificar as repercussões que a escrita fragmentária pode suscitar no leitor. Analisa a obra de Jean De La Bruyère, o primeiro a compor de maneira sistemática um livro sob a forma de fragmentos. Autor do século XVII, La Bruyère foi famoso pela elaboração de Caracteres, obra publicado pela primeira vez em 1688. Da reflexão apresentada, propomos um primeiro movimento de agrupamento que favoreça nossa apreensão das ideias.

1ª ideia: Desligamento. O fragmento traz ruptura ao texto. Ele corta, rasga, descontinua, pois a interrupção é mais modesta e viva do que uma suposta pseudo-síntese.

2ª Ideia: Dejeto. O fragmento se insinua como resto, um pedaço de um todo perdido. Faz associação com a ideia de miniatura, de despojo, de sobra (2005, p. 13). Em outro trecho, o fragmento remete também às ideias de catástrofe, destroço e solidão (p. 51).

3ª Ideia: Modernidade. Quignard associa o estilo fragmentário ao movimento moderno. Haveria « uma espécie de compulsão para branquear, que é muito moderna » (p. 23). Tal branqueamento seria efeito do espaço entre os fragmentos, ao contrário de grandes blocos consistentes de textos linearmente encadeados como, por exemplo, no realismo francês. Em outro trecho, afirma que « na arte moderna o efeito de descontínuo substituiu o efeito de ligação » (p. 24). Este efeito seria decorrente da perda do caráter estável das verdades desde as revoluções científicas do século XVI em diante.

4ª Ideia: Violência. « A fragmentação é uma violência imposta ou sofrida, um cancro que corrompe a unidade de um corpo, e que o desagrega tal como desagrega todo o esforço de atenção e de pensamento daquele que tenta observá-lo » (p. 27). Dito de outro modo: o fragmento ataca a atenção. Enquanto o pensamento busca uma síntese, uma integração entre as partes, os fragmentos lhe opõem resistência. Em outro trecho, atribui ao movimento moderno esta condição cativa de

uma violência que incita a extirpar toda a ligação, toda a explicitação (...) insuportável; que obriga a contrastar tudo, mais do que a unificar tudo; que conduz à brutalidade e à asserção e à originalidade mais do que à harmonia (...) que conduz à negação mais do que à tradição (p. 39)

5ª Ideia: Nascimento, sexuação e morte. O fragmento, através dos cortes que produz, invoca os cortes produzidos pelo nascimento (em primeiro lugar, o corte do espaço intra-uterino), pela sexuação, que implica na separação do outro sexo, e na interrupção trazida pela morte. Compara o rasgo que a leitura de fragmentos produz ao « rasgão ou ruptura que é o nascimento » (p. 31-32).

6ª Ideia: Nostalgia. Quignard concebe o fragmento como efeito de uma fase compreendida entre os séculos XVI e XX, na qual a melancolia teria afetado tanto os homens quanto sua produção artística. Desta forma, o fragmento adquire um « caráter um pouco ruiniforme, depressivo. É o que soçobrou e permanece como vestígio de um luto » (p.50). Da mesma forma, o fragmento teria relação com os restos, despojos « de uma civilização demasiado antiga, demasiado morta » (p. 50). Há uma relação com um pedaço perdido de história, de um vestígio de algo que um dia foi todo. Reproduz esta sensação de despedaçamento, de dissociação de um passado uno: « o fragmento é a réplica do todo que se torna subitamente escrava da individualização exacerbada de si. Símbolo que insiste no luto nativo em que tudo flutua à deriva » (p. 51). Enquanto as obras da Antiguidade teriam se fragmentado ao longo dos séculos, e chegado aos dias atuais sob a condição de partes quebradas pelo desgaste natural da passagem do tempo, os modernos se esforçariam por reproduzir este efeito artificialmente. « Estes pedaços, que evocavam totalidades indizíveis e ausentes, ao provocarem o desejo do todo, ampliavam a emoção » (p. 53). Não apenas isto se refere ao material escrito, mas a todo tipo de vestígio de outros tempos, escultura, objetos de uso cotidiano: « Um calcanhar partido, um braço quebrado, excitam vivamente o espírito em direção a um corpo que se tornou impossível » (p. 53). Quignard explica que este formato insinua uma fantasia de beleza e plenitude que uma obra acabada jamais conseguiria aplicar efetivamente. O fragmento, justamente por sua falha, insinua a esperança de que, em um passado remoto, algo foi inteiro: « Este pouco de carne entrevista (...) leva a acreditar nesse corpo inacessível, um real que não existe, uma presença que a ausência ainda junta, eleva, exalta tanto que a subtrai ao nosso poder - uma espécie de luz sem origem e de desejo mais nu » (p. 53)

7ª Ideia: Instabilidade, errância. Esta dimensão refere-se às diversas formas de perturbação que a escrita fragmentária busca evocar no leitor, seja ao insinuar um encontro com uma totalidade, seja por frustrar este mesmo desejo. Nesta perturbação há um fascínio que se faz incrustar no leitor. Embora esta forma literária traga aversão e suscite irritação por conta da « escassez de prazer que é capaz de dar » (p. 29), por outro lado, « também é preciso conceber o fascínio que exerce e a necessidade que a governa » (p. 29). O fragmento, porém, se apresenta sempre como « desprovido de centro, portanto, erradio; individual portanto plural; carência de unificação portanto ausência de obra; não-totalidade, não-sentido, não-sistema » (p. 49).

Entretanto, adverte, seria preciso cuidado, pois o abuso deste tipo de recurso terminaria por produzir, justamente, uma suavização da sua potência: « a sua insistência satura a atenção, a multiplicação adoça o efeito que a sua brevidade aguça » (p. 24). Quer dizer que o fragmento fascina menos pelo pedaço que mostra do que pelo próprio efeito de quebra que impõe sobre o bloco do texto:

Nas melhores páginas fragmentárias, desejaríamos avidamente qualquer coisa não apenas quebrada mais também quebrante. Um gesto intenso, arrancado ao vazio, e cuja intensidade imediatamente esmagasse (...) A sua interrupção deve transtornar tanto quanto a sua aparição surpreendeu. Neste sentido o seu uso deve ser extremamente circunspecto, e raro, como o grito, que não tem eficácia e poder terrível senão quando nada o prepara e quando nada o repete (p. 57, grifos nossos). (p. 69).

Tais grifos assinalam em grande parte a política do autor: trata-se de praticar uma escrita que causa aquilo que descreve. A experiência de escrita e a experiência de leitura passam por um tal atrito com o texto, que buscam em algum nível atingir um ponto que ao mesmo tempo produz desconforto e encantamento. Ao misturar a matéria rica da linguagem e do silêncio, é possível evocar estados de fascínio e dessideração que possuem apelo potente à experiência de cada leitor.


CONCLUSÕES

Feita esta travessia por alguns aspectos da obra de Pascal Quignard, fazemos algumas aproximações para este desfecho. Em primeiro lugar, fica claro que Quignard busca, através de sua poética, dar lugar a uma experiência que é, antes de mais nada, sensível. Através da porosidade das palavras, procura se aproximar de pontos mudos, pontos de atração, tanto de horror quanto de êxtase (a fronteira se borra) para relançar a obra e o leitor em um movimento que se renova sem cessar.

Vilela, em tese de doutorado sobre o autor, faz um comentário precioso para mantermos em vista o compromisso com a verdade dessa experiência: "Quignard assegura que, para se obter um efeito de verdade, é preciso manter, o tempo todo, a estrutura lacunar do texto. Quanto menos saturado é o texto, maior é a impressão de verdade que se cria e mais tudo se torna enigmático e passa por verdadeiro" (VILELA, 2009, p. 56). Alferi faz apontamento similar: "Onde o sentido está vivo, o borrão é necessário" (ALFERI, 2007, p. IV).

Interessou-nos, particularmente, este efeito de verdade possível de ser obtido através deste movimento. Ele só pode ser experimentado na medida em que encontra alguma potência de ressonância junto ao outro, sem desconsiderar aí os caminhos singulares pelos quais cada leitor pode experimentar e responder a estes estados. Daí o risco brutal da experiência de leitura: o convite pode tocar o leitor ou cair em profunda indiferença. Entretanto, há uma aposta nesta hipótese potente : que sejamos todos vindos de uma mesma condição siderante e dramática. Eis como a linguagem pode tocar qualquer ser falante (ou, como Lacan dizia : o parlêtre).

Procuramos mostrar que os polos da fascinação e da dessideração ocupam um lugar privilegiado na experiência literária de Quignard, ao sustentar a seguinte esperança: que um livro fascine e que este fascínio seja perturbado no decorrer do texto, mantendo o leitor em um estado de arrebatamento e suspensão que o desvie de qualquer pretensão à previsibilidade.

Por último, concebemos que este recurso traz uma analogia pertinente com os dois eventos que sublinhamos da experiência pessoal de Quignard: ao impor um corte sobre uma frase, uma ideia, uma direção narrativa, este gesto força o leitor a ressignificar a experiência passada. Esta ruptura impõe ao sujeito que é alvo dela um redimensionamento da experiência vivida. Quignard convoca o leitor a arriscar-se neste gesto de consentimento ao desconhecido. É a partir da experiência de subtração de um estado anterior que se torna possível buscar uma representação para esta ausência e oferecer ao choque de uma separação um lugar de invenção, relançando-se, assim, em um laço criativo com o outro: tanto para os amantes quanto para escritores e leitores.


Nota 1 - Agalma: Noção que Lacan toma emprestada a partir da obra O Banquete, de Platão para indicar, com seu valor de enigma, a face brilhante do objeto que causa o desejo do sujeito. O que definiria esse objeto é justamente seu caráter ilusório, a insinuação de que há algo nele de misterioso e desejável. Tal brilho precioso seria o vestígio, resto daquilo que, consoante ao momento de entrada na linguagem e no campo simbólico, o sujeito perderia de sua experiência como vivente. Para Quignard, tal ideia é uma apropriação que inclui estes desenvolvimentos de Lacan, mas que dialoga também com a noção de parte maldita, de Bataille, por exemplo. O agalma é antes um indício do objeto, um traço de uma origem afastada e da qual a escrita procura se aproximar através da invenção, evoca justamente a memória de uma ausência, uma origem inalcançável. Assim, a dimensão agalmática está menos na substância do objeto do que em seu brilho e aquilo a que alude (algo sobre as origens). A escrita teria por função, fundamentalmente, fazer ressoar naquele que escreve e naquele que lê o que se tem de mais arcaico e originário, mais íntimo, visando aquilo que, em cada um, é refratário à linguagem e às suas significações. 


REFERÊNCIAS[1]

ALFERI, P. Chercher une frase. Christian Bourgois éditeur, 2007.

ASSOUN, P.-L. O olhar e a voz. Lições sobre o olhar e a voz. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.

QUIGNARD, P. Le nom sur le bout de la langue. Paris: Gallimard, 1993.

QUIGNARD, P. Vie secrète (Dernier Royaume VIII). Paris: Gallimard, 1998.

QUIGNARD, P. Paradisiaques (Dernier Royaume IV). Paris: Gallimard, 2005.

QUIGNARD, P. Un gêne technique à l'égard des fragments. Paris: Galilée, 2005.

QUIGNARD, P. Butes. (Trad.: Verónica Galindez). São Paulo: Dobra Editorial, 2013a.

QUIGNARD, P. La noche sexual. (Trad.: Paz Gómez Moreno). Madrid: Funambulista, 2014.

QUIGNARD, P. O sexo e o assombro. (Trad.: Leda Cartum e Verónica Galindez). Inédito, 2017.

QUIGNARD, P. Entretien. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=KllcGBhHExo> Acesso em 20/07/2018.

VILELA, Y. Ler, traduzir, escrever: Um percurso pela obra de Pascal Quignard. 2009. 227 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009. Disponível em:<https://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/ECAP-7Y3GJD>.


[1] As indicações bibliográficas de Pascal Quignard foram organizadas por ordem de ano de publicação para facilitar a consulta.

* Versão traduzida de artigo publicado na revista Le Sans Visage, da Saint Louis University ©, dedicada à obra de Pascal Quignard. O primeiro número da revista foi lançado em maio de 2019.