Leitura e escrita: insistência entre desvanecimento e fragmento

29/11/2019

Este trabalho se propõe a localizar algumas aproximações entre os recursos da técnica literária chamada escrita fragmentária e um dos instrumentos com os quais a psicanálise opera - através da lógica que orienta a direção da interpretação - para debater quais paralelos, questões e consequências podemos extrair desta comparação, visando um possível proveito na tensão entre os campos. Tal esforço se justifica por entender que a escrita fragmentária se oferece não apenas como um saber-fazer análogo aos efeitos que uma análise busca favorecer, como também ela própria aposta em transmitir e recrutar no leitor algo do efeito em questão.

A escrita fragmentária

Interessa aqui nos remetermos ao esforço de uma certa literatura que se pretende menos afeita ao bom acabamento da comunicação, da coerência e da lineraridade, e que aposta na potência de escavar no texto furos e fissuras que produzam efeitos para além da comunhão de um sentido. Roland Barthes chamaria esta matéria de texto de gozo: "aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta, faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, faz entrar em crise sua relação com a linguagem" (1973, p.25-26). Afirmação que é próxima do que diz Lacan no Seminário 24, quando afirma que "um discurso é sempre adormecedor, exceto quando não o compreendemos: neste caso, ele desperta" (1977).

Tanto Barthes quanto Lacan tratam de chamar a atenção para o fato de que fazer vacilar o sentido insinuado, e consequentemente a compreensão que supomos ter de seu significado, pode causar efeitos de surpresa e consequente reposicionamento no leitor-ouvinte. Embora cada um, escritor e analista, tomem partidos diferentes quanto aos desdobramentos que podem advir desse ato, estão alinhados quanto ao ponto de tensão onde pretendem incidir.

Esse procedimento, como modalidade poética, opera por efeitos de separação que interessam a esta conversa na medida em que se aposta mesmo na renúncia à coesão escolhendo investir, antes, na própria brecha infinita que mantém o movimento linguageiro engajado.

    A escrita fragmentária: um dos nomes desta posição específica que resiste ao um, que busca extravasar qualquer ideia de todo, ou ainda, que investe em homenagear o desvanecimento de uma ficção de unidade, mantendo desocupado o lugar de onde qualquer palavra há de brotar.

      Diversos autores trabalharam este recurso na história escrita: de Heráclito a Spinoza, de Pascal a Nietzsche. Para este trabalho, os recortes versam sobre a produção de dois autores franceses: Maurice Blanchot e Pascal Quignard.

      Quignard é um prestigiado autor contemporâneo francês, conhecido por experimentar o entrecruzamento de múltiplos gêneros: romances, poemas, ensaios. Famoso por seus Pequenos Tratados e, mais recentemente, por uma dezena de romances publicados como parte da série Último Reino, com Quignard trata-se sempre de provocar no leitor este movimento pendular entre sideração e dessideração, e de abalar, desequilibrar aquele que segura um livro nas mãos.

      No ensaio de 1984, Um incômodo técnico em relação aos fragmentos, Quignard tenta identificar algumas das repercussões que a escrita fragmentária pode suscitar no leitor. Toma como referência a obra de Jean De La Bruyère, Caracteres, publicada pela primeira vez em 1688, que teria sido o primeiro autor a compor de maneira sistemática um livro sob a forma de fragmentos. Condensamos aqui um primeiro agrupamento que favoreça nosso recorte. São seis ideias ligadas ao fragmento:

      1ª ideia: Desligamento: O fragmento traz ruptura ao texto: corta, rasga, descontinua. Quignard sustenta que "a interrupção é muito mais modesta e viva do que a pseudo-síntese" (2009, p. 9).

      2ª Ideia: Violência. "A fragmentação é uma violência imposta ou sofrida, um câncer que corrompe a unidade de corpo, e que o desagrega tal como desagrega todo o esforço de atenção e pensamento daquele que tenta observá-lo" (p. 24-25). Dito de outro modo: o fragmento ataca a atenção. Enquanto o pensamento busca o sentido e a síntese, em um esforço de integração das partes, os fragmentos lhe opõem resistência.

      3ª Ideia: Dejeto. O fragmento se insinua como resto, pedaço imperfeito e descartável. Faz associação com a ideia de miniatura, de despojo, de sobra, de destroço, produto de uma catástrofe.

      4ª Ideia: Modernidade. Quignard chama atenção para um movimento tipicamente moderno, que agiria sob o imperativo de "uma violência que incita a extirpar toda a ligação; que obriga a contrastar tudo, mais do que a unificar tudo; que conduz à negação mais do que à tradição" (p. 33). Embora 35 anos nos separe da data em que este trabalho foi produzido, os tempos ainda corroboram esta direção.

      5ª Ideia: Nostalgia, luto. No fragmento há uma relação com um pedaço perdido de história, vestígio de algo que um dia foi todo: reproduz esta sensação de despedaçamento e ruptura com um passado uno. Enquanto as obras da Antiguidade se apresentam de forma fragmentada após suas partes se quebrarem ou se perderem pelo desgaste do tempo, os modernos se esforçam por reproduzir este formato artificialmente. Quignard explica que o fragmento insinua uma fantasia de beleza e plenitude que uma obra acabada jamais conseguiria aplicar efetivamente. Justamente por sua falha, o fragmento insinua a crença de que, em um passado remoto, algo foi inteiro: "Este pouco de carne entrevista leva a acreditar nesse corpo inacessível, um real que não existe, uma presença que a ausência ainda junta, eleva, exalta" (p. 46).

      6ª Ideia: Instabilidade, errância. O fragmento se apresenta como desprovido de centro, errante. Em sua carência de unificação, sustenta uma condição de "não-totalidade, não-sentido, não-sistema" (p. 41).

      Recapitulo para a conversa as seis conexões feitas com a noção de fragmento: desligamento, violência, dejeto, modernidade, nostalgia e errância.

        Entretanto, seria preciso cuidado, pois o abuso deste tipo de recurso terminaria por produzir, justamente, uma suavização da sua potência. Quignard nos adverte que a "sua insistência satura a atenção, a multiplicação adoça o efeito que a sua brevidade aguça" (p. 23). Quer dizer que o fragmento fascina menos pelo pedaço que mostra do que pelo próprio efeito de subtração que impõe ao bloco do texto:

        "Nas melhores páginas fragmentárias, desejaríamos avidamente qualquer coisa não apenas quebrada, mas também quebrante. A sua interrupção deve transtornar tanto quanto a sua aparição surpreendeu. Neste sentido o seu uso deve ser extremamente circunspecto e raro, como o grito, que não tem eficácia e poder terrível senão quando nada o prepara e quando nada o repete" (p. 57).

        Seria o caso de dizer que, para se obter esse efeito de verdade, é preciso manter a estrutura lacunar do texto, preservando o leitor em um estado de incerteza quanto às suas referências: nem abdicando por completo de coordenadas que sustentem um poder de captura, nem tampouco saturando o texto com um excesso de sentidos que roubariam do leitor a potência perturbadora de precisar ele próprio decidir por algumas de suas significações. Seria isso o que ler quer dizer.

          Leitura: o gesto de ligar traços a partir do repentino vazio de onde provieram.

            Maurice Blanchot, por sua vez, explorou a diversidade do espaço literário como poucos e, assim como Quignard, fez incursão a diversos gêneros, entre eles também a escrita fragmentária: A escrita do desastre, A conversa infinita, L'attente, l'oubli, são algumas das obras que visitam esta modalidade poética. Recorre a este procedimento como forma de investir naquilo que chamou de palavra plural. E a pergunta que elege para suas reflexões e que recortamos para esta conversa é exposta assim: "Como escrever de tal maneira que a continuidade do movimento de escrita possa deixar intervir fundamentalmente a interrupção como sentido e a ruptura como forma?" (1969, p. 9).

            Em A conversa infinita, Blanchot faz um esforço para nomear essa possibilidade de uso da palavra que renuncia à pretensão de univocidade: palavra plural, que opera como recurso que aponta para a polissemia que a faz derivar, advertida da impossibilidade de colar-se a um referente final. "A palavra da dialética não exclui, mas antes procura incluir o momento da descontinuidade" (p. 7), fazendo disso um novo poder.

            Ao descontinuar essa promessa de totalização do dizer, o fragmento reabre a potência da língua que brota da suspensão. Assim, a palavra plural estaria "fundada não mais sob a igualdade e a desigualdade, não mais sob a prevalência e a subordinação, não mais sob a mutualidade recíproca, mas sob a dissimetria e a irreversibilidade" (p. 7). A interrupção se oferece a este encontro: introduz uma espera e convoca um ato, o de se lançar novamente à vertigem de inventar um sentido não garantido no texto:

            Falar (escrever) é parar de pensar tendo somente em vista a unidade e fazer das relações de palavras um campo essencialmente dissimétrico que rege a descontinuidade: como se se tratasse, tendo renunciado à força ininterrupta do discurso linear, de liberar um nível de linguagem onde se possa ganhar o poder não apenas de se expressar de uma forma intermitente, mas de dar palavra à intermitência, palavra não-unificante, que aceita ser não mais uma passagem ou ponte, palavra não-dogmática, capaz de atravessar duas margens, que separa o abismo, sem colmatá-lo. (p. 110)

            Veremos adiante que este tipo de operação visa apontar justamente para o ponto de fenda e divisão onde o sujeito se revela de modo sempre evanescente, tal como o formaliza a psicanálise.

            Éric Hoppenot, pesquisador da obra de Blanchot localiza um ponto que nos permite ler uma divergência com a leitura de Quignard quanto às propriedades do fragmento. Para Blanchot, "o fragmento não é o resto ou o traço último de um todo quebrado, o fragmentário é uma 'língua outra' que não se define por relação à totalidade. O fragmentário se caracteriza pelo esforço de pensar esta escrita sem se referir ao Um" (2001, p. 12). Este tipo de procedimento não perde de vista o que demanda de seu leitor: "a obra fragmentária não se reduz a um gesto de escrita singular; através dela, ela cria um novo leitor, que não cessa de se perder, de buscar a perda, suscetível de assombrar e de ser assombrado" por aquilo que Blanchot chama de "a irrevogabilidade do Neutro" (p. 18). O Neutro é uma das figuras da poética blanchotiana para tentar dar nome a este ponto silencioso - justamente ponto de sideração, de corte, que o fragmento busca reabrir para fazer falar - ponto de onde a palavra advém: origem muda, sem nome.

              Uma escrita que busca, na própria falha que funciona como começo, manter acesa essa pulsação inomeada, que não cessa de conjurar que se diga.

                A interpretação na psicanálise: uma prática do fragmento

                Das modalidades de interpretação que podemos inventariar a partir das elaborações de Lacan, diremos que seriam modos que têm em comum a busca de um efeito central: esvaziar, rasgar, reduzir, cortar, separar, desarticular, desinflar, interromper, deslocar, rescindir, serrar os sentidos que um sujeito produz sem cessar para garantir uma consistência a seu ser. Não à toa, Lacan denominava essa prática uma de "deslizamento com o significante" (1972), algo distante de um trabalho de meditação consciente a respeito de qualquer coisa.

                Em análise, se trataria de dissolver esses coágulos, excessos de significação que sustentariam o sujeito colado em um sintoma, alienado e ignorante da fantasia fundamental que o comanda. Mas convém ressaltar: não é que uma análise ignore ou pretenda prescindir do campo do sentido para seu trabalho, mas que visa algo que vai além do sentido, já que se trataria de trabalhar justamente a partir da impossibilidade estrutural de dizer o objeto que estabilizaria o desejo.

                Na conferência Interpretação: as respostas do analista, Colette Soler recolhe de Lacan seis modalidades de interpretação como formas de apontar para esse algo que está além da significação: a pontuação, o corte, a alusão, o equívoco, a citação e o enigma (1994), todas suportadas na aposta de fazer vacilar uma articulação de sentido para ver surgir aí uma outra coisa. É notável a ligação com os comentários de Blanchot. E embora Lacan tenha pensado a interpretação de diferentes modos ao longo das três décadas de seu ensino, recortamos aqui uma de suas últimas formulações, extraída do ano de 1977, em seu Seminário 24, quando fala das "forçagens por onde um psicanalista pode fazer soar outra coisa que não o sentido... pois o sentido é isto que ressoa com o auxílio do significante. O sentido tampona, mas com a ajuda do que chamamos de escrita poética, vocês podem ter a dimensão do que poderia ser a interpretação analítica" (1977).

                A interpretação analítica se aproxima da escrita poética na medida em que ambas podem fazer ressoar para além do sentido, através de efeitos de mutação na língua. Nesse seminário, Lacan afirma que a poesia consistia em uma violência feita contra a cristalização de um determinado uso da linguagem, inaugurando outros usos possíveis e renovando a língua (1977). É sabido que Lacan se debruçou sobre os escritores para interpelar esse tipo de saber-fazer com a língua: Joyce, Dante, Bataille, Duras e Blanchot, para citar alguns dos autores que acompanhou.

                O sujeito para a psicanálise

                Para além da interpretação, convém um último giro que situe um pouco melhor o tipo de entendimento que Lacan propunha para a ideia de sujeito, já que se está afirmando aqui que o recurso ao corte ou ao fragmento tem a mais íntima relação com esta dimensão.

                Lacan chamava atenção para o fato de que o sujeito, longe de se realizar como unidade acabada e estável, alinhada a um referente fixo que o garantiria uma identidade consistente, só poderia ser observado em sua emergência de forma pontual, como suporte de uma articulação significante. O sujeito é um efeito lido a partir de suas emergências singulares, somente à posteriori. Diz em 1962: "Tudo o que ensino da estrutura do sujeito (...) converge para a emergência desses momentos de fading propriamente ligados a essa batida em eclipse, que só aparece para desaparecer e reaparece para de novo desaparecer, que é a marca do sujeito como tal" (1962, p. 136). "É em suas próprias síncopes que temos de localizar o sujeito" (p. 137). A operação que permitiria a emergência desse sujeito seria o corte, a falha em um esforço obstinado e malogrado de colagem.

                Como cada um é marcado pela linguagem, e mais, como cada um lê e se posiciona diante desses efeitos de fading é o que interessaria à psicanálise. Especialmente porque, ao tentar, pela palavra, nomear o traço que a precedeu, há um processo de perda inerente ao campo simbólico. Ao nomear, o sujeito se divide. Ao contar os traços, ler a diferença para daí, tomar a palavra e tentar se dizer, produz uma separação incontornável, que não cessam de alimentar a esperança e a paixão de, pelos sentidos produzidos, voltar a colar-se à sua origem e causa.

                  Três designações sobre o falante:

                  #1: aquele que narra a diferença que o assombrou pela primeira vez.

                  #2: aquele que diante de uma falha de significação inventou sentidos para suturá-la.

                  #3: aquele que, ao oferecer sentido para preencher uma falha de sentido, afasta-se do impossível que desejaria religar.

                    Fragmento, corte, interrupção, tratados como obra ou como ato analítico, congregam uma posição decidida quanto ao lugar concedido ao espanto advindo da vacilação de referências. Em vez da paixão estrutural ao ideal de unidade apaziguadora que fixaria um objeto adequado ao desejo errante, em seu lugar uma oferta, sob a forma de ato, que só pode ser renovada a cada vez, ao inacabamento que sustenta nossa própria condição de assujeitados à estrutura, porém abertos à renovação da potência da língua.


                    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

                    BARTHES, R. (1973). Le plaisir du texte. Paris: Editions du Seuil.

                    BLANCHOT, B. (1969). L'entretien infini. Paris: Éditions Gallimard.

                    HOPPENOT, É. (2001) Maurice Blanchot et l'écriture fragmentaire :le temps de l'absence de temps. Colóquio. Disponível online em remue.net/cont/Blanchot_Hoppenot.pdf

                    LACAN, J. (1962). A identificação. Seminário 9. Inédito. Disponível online em https://lacanempdf.blogspot.com/2018/04/seminario-9-identificacao-jacques-lacan.html

                    LACAN, J. (1972). Do discurso psicanalítico. Conferência em Milão em 12 de maio de 1972. Disponível online em https://lacanempdf.blogspot.com/2017/07/do-discurso-psicanalitico-conferencia.html

                    LACAN, J. (1977). L'insu qui sait de l'une-bévue s'aile à mourre. Seminaire 24. Inédito. Disponível online em staferla.free.fr/S24/S24%20L'INSU....pdf

                    QUIGNARD, P. (2009) - Um incómodo técnico em relação aos fragmentos. Lisboa: Deriva Editores

                    SOLER, C. (1994) - Interpretação: as respostas do analista. Seminário. Disponível online em lacanempdf.blogspot.com/2018/04/interpretacao-as-respostas-do-analista.html 

                    * Trabalho apresentado na XIX Jornada Corpolinguagem / XI Encontro Outrarte
                    DA SUBLIMAÇÃO À INVENÇÃO: RAMIFICAÇÕES DO REAL
                    27, 28 e 29 de novembro de 2019 - UFMG