Condições e impasses para um corpo cortável

10/11/2018

Ofereço minhas premissas de saída: dialogo com alguns textos de Lacan, predominantemente os compreendidos entre os anos 72 e 76; dialogo também com o louvável esforço de Colette Soler para articular a produção de Lacan sobre a interpretação; incluo ainda textos de outros autores que se debruçaram sobre estas mesmas pistas para tecer suas leituras.

Há uma operação

Avanço rapidamente pelas premissas extraídas: a interpretação não é da ordem da explicação ou da gratificação, não conforta, não esclarece nem nutre o campo do sentido. Não se encerra na significação nem dá consistência ao objeto que o analisante supõe para fixar seu sofrimento. Ainda que algo do sentido entre no cômputo, o procedimento chamado por Lacan de interpretação está alhures.

Soler refina esta ideia: "A interpretação não é a palavra. A interpretação tem incidência sobre a palavra analisante, mas não é propriamente uma palavra" (1995, p. 31). Cumpre antes uma orientação bem delimitada: pode ser pensada por seus efeitos, pelo lugar de onde provém, pelo lugar para onde aponta.

Izcovich relembra que uma interpretação opera sempre referida a uma causa: a causa traumática. Se por um lado o analista interpreta com "desconhecimento de causa", por outro aponta para esta mesma causa.

Diremos que ela é da ordem de um dizer, esvaziada de predicados, propõe surpreender o sujeito na relação com os próprios ditos. Operada a partir da transferência, cumpre a proposta de produzir subversões na fala do analisante, favorecendo que uma série de efeitos advenham daí.

Há meios

Soler recolhe com Lacan seis categorias de interpretação: a pontuação, o corte, a alusão, o equívoco, a citação e o enigma. São modos que têm em comum a posição de um silêncio falante que visam um efeito primeiro: esvaziar, rasgar, cortar, separar, desarticular, desinflar, interromper, decantar, rescindir, serrar os sentidos que um sujeito produz sem cessar para garantir uma consistência de ser. Trata-se, portanto, de "dissolver os 'coágulos' de sentido que fixam o sujeito em seu sintoma" (2012, p. 43), como diz Luis Mola.

Ao pretender apontar para o impossível de ser todo dito sobre a verdade e revelar sua disjunção constitutiva, a interpretação propõe fazer "aparecer o intervalo com a esperança de ver surgir lá alguma coisa" (Soler, 1995, p. 29). Grifo a palavra esperança: o analista pode pretender desarticular uma amarração de sentido, indicar uma repetição significante, mas não pode antever o que pode irromper como efeito. Aposta, portanto, a esmo, respaldado pelo método que a intepretação condensa.

Há efeitos pretendidos

Apesar de incalculável a priori, os efeitos de uma interpretação são passíveis de serem formalizados. Para Soler, a mudança que a operação visa diz respeito a "esse efeito de separação entre o sujeito e o objeto do fantasma" (Soler, 1995, p. 23), produzindo assim "um efeito novo de separação, na fronteira entre o sujeito e o objeto" (idem). Trata-se de uma operação que incide justamente na falha de todo saber em dizer o real.

Em O aturdito, Lacan formula que o corte instaurado pela linguagem corresponderia ao dito da linguagem "não mais esquecendo seu dizer" (p. 485)

Há cuidados

A interpretação é um procedimento que não desconhece o real, nem tampouco ignora, o poder de comando do significante. Soler situa nela o esforço de fazer operar um dizer que não comande, que não dirija, que não seja imperativo, diretivo, sugestivo (2017,p. 53). Opera por um uso que não é o do mestre, sendo, por isso, oracular, e deve operar com o texto proveniente do próprio analisante. Deste modo, evita-se que o dizer do analista seja tomado por uma injunção hipnótica e siderante emitida de um Outro consistente, que exerceria sua vontade de gozo, eclipsando o sujeito em sua dimensão desejante. A interpretação busca justamente o oposto ao apontar para "este lugar onde o Outro não responde, onde o falante está inscrito sob um significante que não é do Outro"(Soler, 2012, p. 27).

Há obstáculos

O que se opõe à interpretação? Seria o Eu que, como diz Freud em Inibição, Sintoma e Angústia, busca produzir síntese diante de toda estranheza, sustentando "laços conciliatórios com o sintoma"? Seria da estrutura de desconhecimento do Eu, como diz Lacan no Seminário 2? É a paixão neurótica pela consistência? É a estrutura significante, que busca sem cessar uma amarração que ignora seu impossível? É da ordem da pura inércia, compulsão à repetição? É do enlace do significante encarnado em gozo que resiste a se separar de sua esperança de encadeamento? É da angústia, medo desse alhures no corpo (p. 18), de que falou Lacan em A Terceira, que sutura sentidos compulsivamente? É algo próprio da "debilidade do falasser" (p. 18)?

Soler faz menção a sujeitos particularmente "aderentes à significação". Seriam mais colantes ao sentido e, portanto, neles, o corte analítico produziria efeitos de "perplexidade e desagrado" (Soler, 1995, p. 29).

Mucida alude a um campo estrutural, "algo duradouro, primário ou fixado, efeito do recalque originário, que impõe limites precisos à interpretação" (p. 148), portanto, inabordável de forma direta. Nomeia a existência de "afetos enigmáticos, arredios à interpretação" (p. 151), verdadeiros Uns da alíngua, "que não formam cadeia e são arredios ao campo da verdade e da historicidade" (p. 149).

Ao corte que o analista busca cavar, encontramos do lado neurótico sua contraparte: a paixão pela costura. Diz Russo: "Diante do equívoco, que rasga o significante em diversas significações, ele [o neurótico] se põe a restituí-lo, costurando. Ele amarra os significantes de modo a deixar de fora o um a mais introduzido na interpretação" (p. 140), sempre em prontidão para "suturar a falta no Outro" (p. 140).

Um corpo tocável

"Há palavras que tocam, e outras que não. É o que chamamos de interpretação", diz Lacan na conferência "O fenômeno lacaniano", de novembro de '74. Explicita o quanto lhe permanecia intrigante o fato de que há dizeres que operam seus efeitos sobre o analisante, enquanto outros permanecem inócuos.

Pensar os obstáculos à interpretação passa por pensar como a palavra analítica opera sobre a carne. "A psicanálise é uma técnica do corpo na medida em que, pelo trabalho da palavra, ela destaca esse elemento mais-de-gozar que está presente em tudo o que o sujeito diz e faz" (Soler, 2010, p. 88). É através da interpretação que intentamos este efeito de corte, contra o qual algo resiste e que procuramos melhor circunscrever. Se o elemento mais-de-gozar está entranhado nessa carne, a interpretação, por via do equívoco e do corte, da palavra e do enigma, propõe um rearranjo audacioso, na medida em que este é também determinado pelo quantum de gozo que experimenta.

Pois Soler se pergunta como "deslocar o gozo do sintoma pelo verbo", posto que é justamente "no encontro das palavras com seu corpo que algo se desenha" (2010, p. 22).

Trabalhamos com um corpo siderável, fascinado, impregnado pela palavra; marcado, entalhado, cativado pelo significante; hipnotizado, apegado, ligado a experiências de gozo. Operar com os cortes e rearranjos que a interpretação lança mão requer que se apreenda as propriedades deste corpo peculiarmente passional.

No entanto, se por um lado é pelo equívoco que a interpretação opera, sua via privilegiada, por outro "é preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe" e, para isso, "é preciso que o corpo lhe seja sensível" (2005, p. 18). Não é então pelo consentimento que uma análise opera seus efeitos, mas por algo da ordem de um extravio, uma subversão, pela queda de uma ligação particular, que incide na saturação das fabulações incessantes que buscam tamponar seu próprio fracasso.

"Não é o sujeito que o significante afeta, mas é o corpo que ele afeta" (Soler, 2010, p. 76). O significante, este, incide no corpo, desenhado pela língua, a partir da emergência de episódios de gozo, pedaços de real, que irrompem como restos na fricção entre linguagem e carne.

Lacan ainda alude a uma hipótese sobre o que haveria de constitutivo na palavra. Em sua conferência em Genebra, em 1975, questionado sobre o que permitira a uma criança ouvir e adentrar a linguagem, ele declara: "ouvir faz parte da palavra. O que evoquei prova que a ressonância da palavra é algo de constitucional". Grifemos sua hipótese: há uma propriedade constitutiva pela qual um corpo é colável a significantes.

Não parecemos distantes dos limites que Freud nomeou como viscosidade da libido em Análise terminável e interminável. Mas o que faz um corpo mais ou menos sensível à interpretação? Permanecerá isto ainda como da ordem da insondável decisão do ser?

Um rearranjo

Soler atenta para o fato de que, nas elaborações que se seguiram ao ano de '75, Lacan teria proposto nomear como sintoma "a função que enoda e mantém juntos corpo, gozo e inconsciente" (2010, p. 34), retificando, assim, a direção da análise. "Se o falasser é borromeano, a finalidade não pode ser de cortar, mas no máximo de corrigir o nó, de amarrar de outra forma. Não é mais a finalidade de rescindir o sujeito, mas de assegurar a consistência do falasser" (idem). A interpretação propõe intervir em uma tensão entre, de um lado, o sentido e a paixão que o sustenta e, de outro, a potência passível de ser experimentada pelo além das significações, pelo impossível de ser todo dito.

Conclusões

Por onde trilhar uma pesquisa que siga abrindo as vias para se pensar nos obstáculos à interpretação? Que mais podemos saber sobre quais fatores, contingenciais ou não, contribuem para um corpo mais ou menos sensível à operação que a interpretação propõe? Ainda: como formalizar a habilidade exigida do analista, de modo a poder escutar, aludir, favorecer, apontar para este "horizonte desabitado do ser", singular para cada analisante? Freud localizou aí um rochedo. Lacan tentou avançar com a lógica e a poética. Este trabalho alude para o fato de que ainda resta algo por escutar e inventar.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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________. O "corpo falante". Caderno de Stylus. Rio de Janeiro: Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Edição bilíngue. 2010. v.1.


* Trabalho apresentado no XIX Encontro Nacional das EPFCL-SP, realizado em 10 e 11 de novembro de 2018