Como na boca um gosto...

01/07/2019

"Escrever como quem testemunha uma cerejeira", Ana diz. Há de saber deixar o tempo pulsar, ventar, chover, florescer, cair. Quem sabe outros façam companhia nessa espera. O fruto, os ramos, não dizem muito, apenas narram esse movimento sutil, essa espera ansiada, esse abandono. Um fruto, como um dizer. Escrever como quem abandona-se ao vagar das passagens. Escrever como quem observa um começo.

Ana toma um chá e brinca com dois seixos entre os dedos da mão. Nossos pés descalços se tocam no gramado. Ontem não trocamos uma palavra, hoje ela está lúdica. Bebe um gole e exala sua língua errante.

Um dizer nos assobia: "Ei, já passei. Desapareço. Hei de brotar depois. Quando disseres, já não estarei. E todos hão de tentar provar". Ana mira minha estranheza.

"Provar o quê, Ana, a fruta ou sua ausência?" Indago enquanto seguro a coleira de um cão que se diverte cavando a terra e enterrando seu focinho entre as patas. Ana fez que não me ouviu. É seu modo de sustentar seu dizer. Junto ao cão, trago quatro livros começados e ainda não concluídos. Mudo de leitura quando nos encontramos.

Comer a fruta, colher a flor é bom, falar a fruta também pode ser. Evocar sua imagem e abrir uma nova deriva. Um fruto, como um dizer, tem gosto de alusão e de promessa. Um dizer carrega uma promessa infinita. Há de se avizinhar dessa textura desocupada, com seu rubro perfume. Dizer como quem descompleta o mundo com gosto. Abandonar o galho, fartar as mãos, largar os dedos, exalar fragrâncias, salivar a boca, tomar novo fôlego.

Antes do pôr-do-Sol, Ana lerá para nós um novo poema. Tenho fome e a guardarei até o jantar.