'Preferiria sim! Sedução como antídoto contra a angústia'

24/03/2024

* O texto a seguir é produto de um grupo pesquisa intitulada "Meandros da Sedução", realizado entre 2021 e 2023, no âmbito do Instituto VOX, e que foi integrado por Bárbara Cristina de Souza, Simone de Paula, Paula Thais Pereira, Marcela Albanesi e Aislene Zaro. Todos os textos que integraram esta pesquisa encontram-se publicados e disponíveis na Biblioteca do Instituto VOX aqui


Resumo: A partir do aprofundamento de uma leitura sobre a angústia, propõe-se aqui recolher elementos para avançar na compreensão da sedução em sua formação estruturalmente dúbia: sua dimensão cortante, sua tentação hipnótica, sua condição de transporte, seus tempos distintos, sua relação fronteiriça entre horror e encanto, suas oportunidades de invenção, sua condição tributária para com a linguagem, seu entrelaçamento ao corpo e o tipo particular de deleite que introduz. Entre vazio e cobertura, haveria uma miríade de cadências a se explorar para articular a lógica que agencia a angústia e tensiona a experiência de sedução, pela qual um sujeito é confrontado com um deslocamento de sentidos que o faz experimentar uma vertigem do ser.

Palavras-chave: sedução, angústia, existência, objeto a


A angústia é esse corte ... esse corte a se abrir, e deixando

aparecer... o inesperado...o que existe antes do nascimento de um

sentimento.

LACAN, Jacques


Introdução da questão de pesquisa

A partir do aprofundamento de uma leitura sobre a angústia, propõe-se aqui recolher elementos para avançar na compreensão da sedução em sua formação estruturalmente dúbia: sua dimensão cortante, sua tentação hipnótica, sua condição de transporte, seus tempos distintos, sua relação fronteiriça entre horror e encanto, suas oportunidades de invenção, sua condição tributária para com a linguagem, seu entrelaçamento ao corpo e o tipo particular de deleite que introduz. Entre vazio e cobertura, haveria uma miríade de cadências a se explorar para articular a lógica que agencia a angústia e tensiona a experiência de sedução, pela qual um sujeito é confrontado com um deslocamento de sentidos que o faz experimentar uma vertigem do ser.

Diante de um acontecimento que revele a inconsistência de um sentido e faça vacilar o semblante que sustenta o objeto de desejo (em sua condição de causa), que forças decidem pelos desdobramentos da posição do sujeito em relação à angústia deflagrada? Entre o fascínio medusante e um ato de invenção, quais elementos determinam o campo dos possíveis? De que depende que a experiência de divisão, que a sedução reabre a cada vez, seja tomada como enlace erótico ou na chave da recusa odienta? De que fineza seria o tipo de consentimento que localizaríamos nesse engajamento que a sedução solicita do seduzido, incitando-o a ultrapassar a angústia? Aposta, insondável decisão, escolha, como nomear essa passagem?

A sedução poderia ser concebida como um dos modos de desviar o sujeito das capturas hipnóticas de seu enredo fantasmático. Proponho lermos, inclusive, que a sedução desangustia, ainda que force o seduzido a uma ultrapassagem do instante siderante. Seria isso o que a sedução faz? Adiar a aproximação derradeira que eliminaria o engano que sustenta qualquer objeto para o desejo? Afinal, quem não precisa de promessas cativantes o suficiente para que a satisfação experimentada sulque uma marca mais memorável que a decepção de um ideal?

Avancemos...


Os deslocamentos da segunda navegação

A questão decantada desse percurso de pesquisa indica que o efeito que a experiência de sedução toca diz respeito à existência. A existência como o efeito da pregnância da linguagem fazendo corpo no falante, solicitando complemento, fixação, cópula, amarração. A existência engendrada pelo fato de que se fala. O corpo falante tem uma qualidade de aderência que a sedução faz tremer, vibrar, acaricia porque instabiliza. Excita porque transtorna. Toda vacilação de existência convoca uma resposta linguajeira e força a articulação significante a se mobilizar, afetando o sujeito. Acontecimento sutil ou violento, trata-se sempre de um tremor na língua. E a sedução deixará alguma herança digna (em vez de ressentimento ou indiferença) se a linguagem que vier após sua passagem for mais fiel ao sujeito – do inconsciente, diga-se – que aos clichês que, a princípio, mimetizamos do Outro para nos sustentar. Diríamos de um sedutor: aquele que me fez perder um pedaço de saber sobre mim e me inspirou a dilatar minha língua. Diríamos de um bom seduzido (existem os ruins): aquele que, diante da perda de linguagem, aceitou reinventar um pedaço da palavra perdida e desfrutou de fazer-se outro no caminho.

Desta forma, a sedução favorece um adiamento do ser em prol de um percurso que não seria despropositado chamar de aventura, com seus riscos e deleites: é que a sedução joga o ser para depois. O seduzido consente em não ser, por enquanto; cede desse interesse estrutural em benefício de uma experiência incerta – mas incandescente – com a linguagem aberta via sedução.


Notas para circunscrever a angústia

Para nos ocuparmos do debate com as questões abertas, visitemos agora o enquadre básico que Lacan fornece à angústia no decorrer do seminário de mesmo tema. A angústia é um afeto (p. 23), cumpre uma função (p. 15), existe a partir de um vazio (p. 18), irrompe desde uma fenda (p. 201), acontece em um lugar de borda, onde a imagem especular mostra seu limite (p. 121), emerge em determinados pontos (p. 15) (o que nos convida a entender a especificidade de seu surgimento), tem relação com o desejo (p. 25) e está condicionada ao desejo do Outro (p. 14). Como afeto, a angústia não é recalcada, apenas os significantes que lhe fazem borda (p. 23).

No seminário em questão, são recuperadas as condições de advento do sujeito através da introdução primária de um significante no real, o mais simples, chamado de traço unário, momento mítico e lógico que antecederia a própria aparição do sujeito. O que interessa reter é que a angústia é tributária dessa condição de anterioridade. Carrega a marca daquilo que não passa ao significante, que resta de tal operação.

Assim, diferentemente do campo significante, que opera por uma estrutura ficcional, falaciosa, a angústia é um afeto que escapa a essa lógica por guardar a marca do que antecede a operação de advento no campo do significante. É por isso que Lacan propõe que a angústia não engana (p. 88). Não engana porque está situada antes do conhecimento, fora dele, antes do nascimento de um sentimento (p. 88), à margem do significante. O significante é considerado a via de acesso ao saber e à identidade, às custas de um efeito residual que se furta à linguagem e que insiste sob a forma que nós, psicanalistas, reconhecemos como campo do desejo.

Lacan propõe dar a isso que resta um estatuto de conceito-chave, de objeto, e o nomeia a. Esse a possui estatuto de causa do desejo. Aquilo que se perde, que resta, que escapa, que não passa, é aquilo que causa o meu desejo. Tentamos dar imagem e palavra a essa discrepância, a essa hiância; conferir consistência a esse saldo de operação matemática. Dar sentido e contorno a este campo é uma operação falaciosa, mas é dela que depende a sustentação de uma posição habitável pelo sujeito em um discurso qualquer. Causa angústia aquilo que não encontra imagem materializável, especularizável, nomeável para recobrir um lugar vazio de inscrição.

É por isso que o falante só pode sustentar uma relação fictícia com o desejo mediante um artifício pelo qual se elege uma imagem virtual para um objeto funcionar como avatar para o desejo. Em outras palavras, propõe Lacan, o a é invisível (p. 51).

Berta chega a propor que a angústia eclode "quando o sujeito se confronta com situações nas quais ele não encontra um estofo para sustentar sua ficção, tempo no qual a tela se abre, e confronta o sujeito com o mais íntimo do seu ser, sua falta-a-ser" (2015, p. 170). Complementa pouco depois: "a angústia é sinal de que se apagaram as coordenadas simbólicas da fantasia" (idem, p. 181).

Assim, defendemo-nos da angústia encobrindo-a com a fantasia e o desejo. O desejo é aquilo que encobre a angústia, diz Lacan (p. 210). E a fantasia opera como um tratamento privilegiado para este fim, na medida em que satura o desconhecimento fundamental do sujeito com uma intrincada trama de sentidos mais ou menos cristalizados que localizam o falante no desejo do Outro. Mas isso é um truque, sempre um truque. Lacan chega a referir-se à "função estruturante do engodo" (p. 262), insistindo que a falta só é apreensível por intermédio do simbólico (p. 147). Ou seja: sem engodo, nada de desejo, nada de existência.

Proponho atenção a este ponto delicado: a angústia seria o afeto correspondente à presença do objeto em torno do qual nosso psiquismo se constitui, o objeto como ausência de inscrição. Um nada. "Toda angústia é angústia de nada" (p. 240). Como falantes, fazemos qualquer coisa para evitar isso. É preciso que haja algo. Colocaremos algo aí. O desejo (isso que é feito do desejo do Outro) é herdeiro desse imperativo: é preciso haver algo (que o Outro deseja). A sedução, veremos, é a mola com a qual o desejo pode cumprir tal vocação. Promessa de haver algo: um saber que faça o desejo reluzir.

Tenho certeza que todos aqui já ouviram a expressão frio na barriga, ou então a versão alternativa borboletas no estômago. Talvez a ideia de vertigem e mesmo a de uma descarga de adrenalina ajudem a compor essas paisagens por onde a angústia pode ser pensada. Seriam matizes que comparecem aqui pelo que trazem de um certo efeito, notadamente fisiológico, que indica um momento indeterminado, entre desconforto e deleite, onde o corpo produz respostas que denunciam um assujeitamento de estrutura.

Assinalemos: bem ou mal, todo mundo trata a angústia, é um fato de estrutura. Todo mundo busca reinstituir as coordenadas. Mas como pensar os modos como o falante se vira para fazer desse ponto de hiância um lugar habitável? Pareceria uma questão estética: se a qualidade da vacilação de referências permitir, uma nova promessa pode colorir a vibração da inconsistência com as cores do encanto. Depende da contingência, da sedução e dos recursos e suportes disponíveis no campo imaginário e simbólico. Do contrário, a melancolia e o ressentimento haverão de ser mais viscosos.


O tratamento da sedução

No livro A Casca do Tempo Nascente, propus situar a sedução como um deslocamento, desvio produzido na posição que um sujeito ocupa em um dado discurso. Ao transtornar as coordenadas de localização de um desejo, a sedução pode ser pensada como uma falha que engendra um entusiasmo por meio do qual um saber será buscado como promessa de recolagem (de um sentido para o desejo). Esse seria seu fundamento básico. Hoje faremos essa posição avançar.

A sedução é tributária da operância das leis do significante, joga com suas regras. E se a angústia não engana, como dito há pouco, o significante engana. É dele que a sedução se serve para produzir seus efeitos de transporte, metonimizando o desejo. Quando lido, o engano faz mover – em direção à restituição de um sentido. Se um acontecimento produz divisão, aí o sujeito advém seduzido, com maior ou menor graça. Mas quem é que pode achar graça em dividir-se? Nem toda divisão seduz, há aquelas que só fazem trauma.

O efeito sedutor se sustenta em imagens que desempenham a função de promessa de colagem para recobrir o real, que é corte. Sob uma certa perspectiva, a promessa é irresistível: diante de um corte, não dá para não buscar uma promessa, ainda que possamos recorrer à mais problemática das promessas: a melancolia, promessa de nenhuma ilusão. Uma das questões a se colocar aqui é com que urgência precisamos reestabelecer a colagem e com qual caráter de totalidade tal colagem se faz necessária? Há promessas que induzem movimento e criação, outras que induzem petrificação e sonolência. São questões que concernem ao analista, especialmente por sua pertinência clínica.

Assim, a sedução joga e põe em risco a coisa mais valiosa que o falante tenta proteger: sua existência, isto é, sua consistência agenciada por um discurso. Daria para colocar isso em xeque? Daí a importância de refinar o dito: não é que a sedução negue a existência, ela propõe deixá-la para um depois. Ela coloca a existência naquela cenourinha pendurada em uma vara que alguém segura montado sobre o casco de uma tartaruga, e cuja distância próxima faz a tartaruga-seduzida caminhar. Como falantes, somos a tartaruga mais ou menos engajada em um desejo que a incite. No entanto, seria preciso a cada vez uma cenoura-de-saber-sobre-o-desejo a uma distância próxima fazendo as vezes de chamado reluzente.

Lacan diz ainda que "sempre há no corpo, em virtude desse engajamento [na dialética do significante] algo de separado, algo de sacrificado, algo de inerte" (p. 242). A sedução toca nesse algo. Ela o atiça, o acaricia. Toca no membro ausente e sensível, erógeno, do falante-mutilado. Toca no a, na ausência de inscrição, no fora do conhecimento (por isso a relação com a angústia). Aquilo que é ausência em mim, quando tocado, solicita um sedutor.

Agora, a sedução não é igual à angústia porque mantém um compromisso com um jogo de enlace. Não se propõe ao solipsismo. Ela quer o contágio, quer provocar uma crença e subverter os próximos sentidos. Digamos de outro modo: a sedução não está nem aí para o custo da decepção e do engano. Não recua da angústia. Quer brincar de promessa, é incansavelmente crédula, ainda que possa se refinar cada vez mais e ser mais seletiva com as promessas mobilizadoras. Por isso a angústia precisa ser pensada mais como ponto de passagem, instante de espanto necessário para o franqueamento de um novo gesto. A sedução é antídoto contra a angústia.

Ademais, a sedução é o oposto da passagem ao ato. Não se evade da cena. Mantém o endereçamento ao Outro. Adia, faz durar o rodeio em busca de uma satisfação. Convida à imaginação, ao vagar, relança a aposta, dá crédito. Quando o ato vem, é mais para tentar pôr fim à sedução, encontrar um porto onde atracar (o significado). 

Se fizermos um pequeno esforço, podemos verificar a conotação aventuresca que responde a isto no próprio seminário sobre a angústia. Ali, Lacan propôe que "todo o posicionamento posterior do sujeito repousa na necessidade de uma reconquista [de um] não-sabido original" (p. 75). Eis a sedução: reconquistemos o não-sabido original (e impossível), isto é, aquilo que se perdeu na operação de advento do significante. Esteve na boca das sereias, esteve na boca da serpente no Éden, escorre do discurso dos sedutores na cultura. Todo falante haveria de ser atiçável por essa proposta indecorosa. É seduzível aquele que pode assumir para si o desejo dessa conquista.


A sedução é refinável

E de que maneira a sedução, que justamente nos faz vislumbrar o abismo da angústia, poderia ser uma experiência de júbilo? Como acontece de, às vezes, o brilho irradiar para além do horror de nos redescobrirmos exilados do não-sabido original?

Consideraremos que a sedução faz supor que sim. Diferente de uma resposta melancólica, que tenta supor que não. Supor que sim, que há uma graça para além dessa pequena brecha de sentido que nos incita a depositar ali uma esperança, uma promessa de abundância. Um dia, haverá. Assim, podemos conceber a sedução como mero efeito de estrutura: Há colagem. Há saber sobre meu desejo no Outro. Há um desejo que me espera e me completa. Posso vir a saber mais dele.

Todos os seduzidos, pequenos Hans: não tem, mas vai crescer! Ou então, grandes Bartlebys ao avesso: preferiria sim! Preferiria supor um brilho: I would rather yes! 

Poderia soar como uma apologia tresloucada: ignoremos os limites, negligenciemos a castração, reinstituamos a fé delirante. É aí que o impasse merece ser atravessado: é preciso ler onde a sedução é passível de refinamento. Estou interrogando as condições preliminares pelas quais alguém pode investir uma falta de garantia com uma aposta reluzente. Pois a que um seduzido diz sim?

Uma análise tentaria polir, fazer funcionar um certo aprendizado: não é exatamente para desinvestir do engano e do impossível, nem tampouco do encantamento. Mas então como operar uma astúcia que considere os limites à colagem e que solicita que se possa renunciar a esta promessa específica em benefício de uma outra invenção? Se não a colagem, em nome de que nos ofereceríamos a mais um desvio? Se a cópula com o saber pleno não é possível, se o objeto definitivo do desejo não se deixa objetivar, o que mais poderia mobilizar o falante a esta aventura rumo ao coração do desconhecido, reabrindo isso que está antes de qualquer conhecimento?

É possível encontrarmos um seduzido menos cativo da promessa cegante. Há uma torção que pode acontecer dentro do campo da sedução: já se sabe que há limites à colagem, já se sabe do fracasso do rapport sexual com o Outro e, mesmo assim, há um prazer opaco a ser visitado.

Tocar em algo novo, experimentar a vibração da linguagem, transportar-se, podemos contar com essa promessa para encantar os seduzidos? Prometo que, depois desse caminho, você será outro. Não o conquistador do não-sabido original, simplesmente outro. Isso não teria um valor digno o suficiente para engajar o desejo? Então aí... aí a sedução se transfigura: não é mais existe colagem, mas um vai tocar na invenção, vai tocar. A sedução diz mais: o deleite vai continuar, vai continuar. Prazer na mutação (o que também quer dizer em uma perda) de ser. 

Há uma traição que é preciso acontecer nesse processo; trair a fidelidade à promessa de colagem em benefício do prazer da invenção. Trocar de paixão no caminho. O refinamento da sedução – e o tratamento da angústia – requerem do falante esse gesto. Sem essa traição, não haveria escape da impotência e da angústia paralisante.

Há um entusiasmo muito particular ligado à experiência de invenção e de produção, seja ela uma obra, um encontro, um gesto, uma fala, uma outra vida. Ela opera uma modificação no falante. Ele se experimenta mais artífice de objetos e de efeitos-surpresa que demandante de objetos do Outro.


A encruzilhada ética

Às vezes, debater a sedução costuma insinuar um cálculo de ordem econômica (o que se ganha, o que se perde), mas noutras, parece que o que está em jogo é mais da ordem da qualidade, isto é, da unicidade de uma nova marca. De todo modo, a direção do argumento aqui se assemelha a uma recomendação moral: é melhor encantar-se que recusar-se ao jogo com o engodo. Resta oferecer uma transmissão que mostre esse valor.

Como dar à vacilação outro tratamento que a tristeza e o ódio? Como dar ao enigma insistente outro tom para além do fálico? Haveria de se perdoar a identidade impossível e, ainda mais, perdoar a paixão com a qual nos entregamos ao sonho insensato de apagar os limites ao saber. Os analistas aqui não podem verificar quantos pacientes vivem em autodesprezo por conta desse empreendimento malogrado por estrutura?

Criar dignidade à posição de sujeito: a operação mais incerta, menos antecipável e, no entanto, a mais central à qual uma análise se propõe. O analista é convocado neste momento: até que ponto ele pode ajudar – e sobre isso ele deve ter algo a exibir – a destacar essa dignidade, que jamais está habilitada de saída? A cada jogo transferencial, as intervenções de um analista deveriam estar atravessadas por essa dignidade. Mas como? Por enquanto, um começo de encaminhamento: responder ao drama do não-ser com uma falta-a-ser já é tratamento; já implica em uma esperança, não de plenitude, mas de uma satisfação que acolha a divisão. Um analista é aquele que, no mínimo, oferece traquejo para jogar com as surpresas e sobredeterminações que a linguagem impõe ao falante que ele também é. Seria preciso sustentar tal assujeitamento com algum charme.

O que permite avançar para além da angústia é habitar um lugar ao qual se chega pelo reposicionamento diante de uma falha, mais ou menos nos seguintes termos: eu achava que a satisfação dependia da consistência de uma identidade e da garantia de amor vivida junto ao Outro. Não depende! Existe satisfação mesmo sem identidade plena, mesmo sem Outro consistente, mesmo sem amor garantido. O indispensável é somente um pouco de crédito encantado, de material imaginário e de jogos de promessa que me reabram ao Outro. O restante é poroso, furado, inventado.

E que desejo sustenta aquele que inventa a desesperança e o aniquilamento de uma narrativa de gratificação? O que privilegia a pessoa que diz prefiro não!? O desejo de chegar logo à verdade, talvez. O desejo de nunca mais se enganar. Haveria engano mais besta que aquele que deseja nunca mais se enganar? Morrer atado ao mastro da pior das falácias: a de que se detém a verdade segura? Sabemos que existem aqueles que gostariam de ver/saber tudo. Aí a sedução só pode naufragar diante de colagens precárias, condenada à hostilidade e a desfechos violentos.


It's a kind of magic...

Recuperemos uma das imagens que melhor encarna a sedução: o truque de mágica. Serviria quase como um paradigma: olhamos para o mágico, esse mestre da sedução, geralmente advertidos de que algum truque acontecerá. Mesmo assim, emprestamo-nos à experiência, confiando a ele nossa expectativa. O mágico é aquele que aceita e chega mesmo a solicitar esse crédito da parte do espectador. Prestem atenção aqui, diz o mágico, convocando a olharmos em uma direção. Ele ritualiza uma cena, desenvolve seus gestos, manipula um objeto qualquer, sustenta uma espera e, de repente, produz um desfecho que necessariamente surpreende o espectador. A surpresa vem de um lugar para onde o olhar não estava preparado para ver, muitas vezes brincando com o perigo, com o suspense, e oferecendo um desfecho de alívio. Ali, dizemos: fomos surpreendidos (o que não é distinto de 'fomos enganados'), que divertido! Só existe truque de mágica porque nos deixamos enganar. Com a considerável diferença de que arriscamos pouco ou nada de nosso ser em um show de mágica.


Brevíssima interrogação ao contemporâneo

Aos leitores e ouvintes, um instante mais da atenção dedicada. Uma vez aberta a via destas perguntas, fica difícil domar o texto. Proponho não renunciar ainda ao fluxo de imagens e perguntas que derivaram desse exercício. O fim já aproxima, eu vos prometo

Ocorre perguntar: até que ponto os discursos hegemônicos atuais são suporte para alguém ficar mais ou menos empacado diante da angústia? Na medida em que, segundo Lacan, o discurso da ciência visa objetivar a falta, foracluir o sujeito, não estamos aí diante de um impasse que mais acirra a angústia que a alivia? Quanto mais esperança de saber pleno consistente, mais angústia e menos a sedução tem chance de se refinar. Quanto mais o mercado de objetos sustenta que há colagem, menos chances temos de topar brincar com o que disso falha. Quanto mais esse jogo com o que escapa aos parâmetros do coletivizável é relegado ao lugar de bobagem pela cultura, menos dignidade à posição de sujeito e mais angústia. Para gozar com a sedução, é preciso suportar desviar-se um tanto dos imperativos coletivos. Um seduzido é um dissidente das verdades consensuais.

Outra questão: por que uma criança costuma ser mais seduzível que um adulto? E por que um idoso, menos? Um paciente de 70 anos me repete: cansei de viver, cansei de jogar o jogo. Ainda que possamos ouvir o que há de neurótico nessa narrativa, há algo de transindividual aí: a relação com o cacife disponível para uma imaginação que pode esquecer um pouco do tempo, ou com um horizonte de fim de jogo parece imprimir algumas condições à sedução. As crises de angústia, por exemplo, são mais frequentes em jovens, não em idosos. O tipo de projeção social e coletiva sobre os jovens, também. Parece que só fazem crise de angústia aqueles de quem são esperados feitos significativos, aqueles para quem a colagem ainda parece um empreendimento sustentável.


Conclusão

A sedução permite que algo passe do necessário ao contingente, que algo mude, caia pelo caminho, desvie de uma repetição. Ao mesmo tempo, é aquilo que inaugura uma via, que habita o inédito, o fora de série: poder de uma contingência extraordinária, giro de posição que refunda uma existência deslocada de seu custoso mastro defensivo e ordenador. Por quanto tempo? Até uma próxima ruptura... e uma nova sedução.

Diante da queda do suporte, seria preciso ser mais heroico, menos letárgico. Estar assujeitado à linguagem não quer dizer estar impotente nem necessariamente impedido de prazer. Assim como padecer da cegueira que é própria aos falantes não significa ter que ficar imóvel para evitar errar. Concordo quando Calligaris (2022, p. 71) diz que 

as psicoterapias [todas] só têm esta ambição: buscar entender como, na vida concreta do paciente, é possível descobrir alguma coisa que a valorize; [...],. É por isso que a terapia acaba sendo um trabalho quase estético, um trabalho de recriação narrativa [...] que dá atenção a uma vida de tal forma que ela se valoriza.

O que se propôs agregar aqui foi pensar de que maneira o saber relançado alhures através da sedução favoreceria essa mudança no valor de uma vida. Mauro Mendes chama esse trabalho de ressensibilização da experiência humana. Um final de análise não é um que visaria erradicar a sedução: ela haveria de se refinar em versões menos rivalizadas, menos melancolizáveis. O que se retifica é a significação da posição de sujeito. Ocupamos nova posição diante do que, não cessando de não se inscrever, seduz. 

Uma pergunta conclui o texto, isto é, deixa-o aberto à espera de algum seduzido: é possível desenhar diferentes tipos de corte (o que, como vimos, implicaria em diferentes efeitos de sedução)? Refiro-me a modos básicos: o corte diante de uma obra de arte, de um encontro amoroso, de uma situação catastrófica? Um corte pode favorecer mudar de real? Lacan diz que cada corte produz dejetos diferentes (p. 185), o que nos levaria a interrogar pelos desdobramentos de colagem que cada dejeto incita. Ou seriam tais cortes sempre únicos, irrepetíveis? Se um sujeito é efeito do corte, caberia enquadrar alguns formatos: os suaves, micro-cortes, outros violentos, vastos. Do tipo furado, rasgado, serrilhado, torcido, estropiado, sabe-se lá como mais. Dependeria do lugar privilegiado que os significantes cortados ocupam em uma determinada cadeia de significações. Dependeria da cadência cortante, do modo como um novo significante adentra a cadeia. Do tipo de enlace que comparece como sutura. Da distância, da afinidade entre os significantes substitutos, candidatos ao tratamento. O tempo de uma falha seria outra importante questão a meditar. Não deixa de ser uma vocação cabível à psicanálise: uma espécie de ciência dos cortes nos significados e nos efeitos de sedução, deleite e cristalizações que derivam daí.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERTA, S. Escrever o trauma, de Freud a Lacan. São Paulo: Annablume, 2015.

CALLIGARIS, C. O sentido da vida. São Paulo: Planeta do Brasil, 2023.

LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.


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